(continuação)
19
ADEUS
Depois da hora de almoço a chuva reapareceu, primeiro pouco mais que humidade condensada no ar, mas depois engrossando com o correr da tarde. Quando chegaram ao Monte das Murtas, pelas cinco da tarde, já a noite procurava o seu poiso, vinham todos encharcados, com um ar miserável.
Foram recebidos com excitação pelos companheiros que se acoitavam do mau tempo na casa aquecida pela bem alimentada lareira. Pedro e Patrícia logo se ofereceram para ir tratar do boi, enquanto calor e roupa seca eram oferecidos aos caminhantes. Entre beijos e abraços de boas-vindas Vasco conseguiu anunciar.
- Levem o boi mas deixem o porco.
- Qual porco?
- Na carroça está um javali que se cruzou connosco. Se calhar já vem tarde para o jantar, mas temos caça grossa para cozinhar.
Falava e caminhava para junto da lareira que lançava na casa um aroma a azinho.
- O sacana atacou-me, mas o Nuno acabou com ele. Graças a Deus.
As exclamações aumentaram enquanto Nuno e Mário carregavam com esforço o bicho para a cozinha.
- Mas o que pensam que estão a fazer? – gritou Inês – Tirem-me isso daqui. É tão grande e malcheiroso que não conseguimos estar cá dentro com ele.
- Então o que lhe fazemos?
- Levem-no para a rua, para o barracão, para onde quiserem, mas essa coisa não cabe dentro de casa.
As expressões de desânimo dos dois carregadores contrariados sentiram-se na confusão frenética dos que apenas seguiam o animal e revelaram o esforço necessário para transportar tanta carne. Rita e Susana deram uma ajuda e os quatro, cada um pegando por uma pata, levaram o javali dependurado. Mesmo sob a chuva fria Filipa e Sandra seguiam, saltitando, o primeiro javali que alguma vez tinham visto. Inês ainda disse:
- Hoje não há carne. Vegetais no forno é o jantar. E já vai atrasado. – conclui virando-se para a bancada onde se espalhavam os ingredientes. Luisa entrou para a ajudar.
- Então como aconteceu isso? – perguntou Luis a Vasco que tentava aquecer as mãos na lareira.
- O Jorge topou qualquer movimento à frente. Depois fez o Javali sair do esconderijo à pedrada. Só que o sacana do animal em vez de fugir, decidiu vir atrás de mim. Como é duro que nem pedra os tiros de caçadeira que lhe acertei não o fizeram parar. Já me tinha derrubado quando o Nuno o abateu com dois tiros. Havias de ter visto. Foi fantástico. Com o javali em movimento o miúdo disparou duas vezes, certeiro, em cheio na cabeça.
- Aprendeu bem.
- Aliás, deixa-me devolver-te a pistola. Tem menos três balas. Ainda foi preciso um tiro de misericórdia.
Enquanto se afastava para ir pegar na mochila do filho que restava caída junto à porta da entrada, Jorge aproximou-se de Luis.
- Desculpa lá, Luis, mas porque não sabia eu que o puto levava uma pistola?
- Desculpa, devia tê-lo dito.
- Pois devias. Já para não discutir se não deveria ter sido eu a levá-la.
- Isso já não era discutível. Como se viu. O Nuno soube como usá-la.
- Também eu saberia. Porque raio não me dás uma pistola?
- Jorge, ... primeiro tenho que saber como a usas... eu não gosto de distribuir armas, não me sinto à vontade com isso.
Vasco reaproximou-se com a Glock na mão.
- Eu ataquei um javali com um machado de cortiça que à última da hora decidi meter na mochila. Achas que se soubesse que tínhamos uma nove milímetros eu tinha cometido tal loucura?
- Está aqui a arma. – entregou Vasco.
- Eu posso ficar com essa pistola.
- Nem pensar, Jorge.
- Neste momento, se não confias em mim, eu também não confio que a tua estratégia defensiva seja a melhor para este grupo.
- Como?
- Se houver qualquer problema tenho que te ir pedir uma arma e ficar à espera que nesse dia sejas simpático? Não me parece.
- Não te ponhas com merdas. A caçadeira está sempre à disposição de todos, ali por cima da porta da entrada. É mais do que suficiente. As pistolas e as G-3 ficam à minha guarda, em local seguro.
- G-3?!
Só então Luis se apercebeu que revelara a existência das metralhadoras numa das piores alturas.
- Sim. Tenho duas G-3 cá em casa.
- Com duas pistolas, duas G-3 e uma caçadeira mandaste-me para Estremoz de mãos a abanar?
- Ouve... vocês não...
- Não é “vocês”, - interrompeu Jorge elevando o tom de voz, - sou eu. Eu fui de mãos a abanar. Que me interessa se o puto tinha a pistola. Eu tinha um machado porque o levei à última da hora.
- E pelos vistos ias muito bem. – culminou Luis com o seu tom mais autoritário.
Levantando as mãos com um gesto rápido, Jorge agarrou a pistola que Luis segurava à sua frente também com ambas as mãos. Por reflexo puxou-a para si, para impedir Jorge de se apoderar da arma, mas o insucesso de tal acção fez com que ficassem cada um a puxá-la para o seu lado.
- Eu fico com essa...
- Nem penses...
- Mas vocês estão doidos? – gritou Vasco, - Cuidado que isso pode disparar.
No preciso momento em que Vasco gritava esta última palavra uma detonação tudo abafou.
As pistolas Glock têm uma característica curiosa. Não têm uma patilha de segurança clássica que funcione como travão, que numa determinada posição fixe o percutor e impeça o disparo acidental. Assim, estão sempre prontas a disparar, caso tenham uma munição na câmara, desde que para tanto seja posto um dedo no gatilho. É na própria face do gatilho que se encontra uma patilha que tem que ser pressionada para haver disparo. Necessariamente, quando se carrega no gatilho, destrava-se a arma. Desta forma ela pode cair, levar uma pancada ou sofrer qualquer outro acidente de percurso que não se disparará por acidente. Em contrapartida, é extremamente rápido, instantâneo mesmo, ultrapassar a segurança e disparar.
Precisamente, naquela insensata disputa pela pistola, um dedo de Luis ou de Jorge encostou-se ao gatilho e no puxa para cá, empurra para lá a arma libertou uma das suas letais descargas.
Enquanto ecoava a detonação Jorge, Luis e Vasco pararam, os três olhando para a Glock disputada a quatro mãos.
- Foda-se! – gemeu Luis. A pistola foi largada precipitando-se para o chão, inofensiva. Luis levou as mãos à virilha e caiu. Jorge olhou, mas foi Vasco quem primeiro viu o sangue.
- Luisa! – gritou, - Depressa, o Luis foi ferido. Luisa já estava ao seu lado. O tiro ouvira-se por todo o monte e as duas mulheres que estavam na cozinha chegaram em duas passadas. Inês gritou e caiu de joelhos para agarrar a cabeça de Luis que depositou no colo. Luisa lançou-se à perna esquerda cujas calças eram já uma poça de sangue.
- Depressa, traz-me a tesoura da cozinha. E panos da gaveta. – disse para Vasco que corria para a cozinha de onde regressou em segundos.
- Eu não... Eu não... Eu não... – gemia Jorge, de pé, mãos entrelaçadas à sua frente, como se cada uma segurasse a outra para não a deixar fazer qualquer asneira.
Luisa cortou as calças de Luis e com os panos tentou limpar o sangue, procurando a ferida.
- Merda, merda. – ia dizendo à medida que se apercebia dos esguichos de sangue que se elevavam da parte interna da coxa.
A porta abriu-se de rompante, entrando o resto do grupo que acorrera desde o barracão assim que ouviu o tiro.
- O que se passa?
- O que foi isto?
- O que é que aconteceu? – as perguntas sobrepuseram-se respondidas apenas pelo caótico cenário que se desenvolvia no chão em frente da lareira.
- Aqui, Vasco, a ferida é aqui. Põe aqui a tua mão e faz força. Toda a força que puderes.
“Alguém me traga a mala dos primeiros-socorros. E água, muita água, uma panela, um garrafão. Preciso de água.
“Luis! – gritou – Fica comigo, Luis, não te deixes desmaiar...
- Ele já não reage – chorou Inês. E gritou, - Luis! Reage, Luis! Sou eu, Luis! Luis!
- Eu não… Eu não… Eu não...
- Como aconteceu isto? – insistiu Rita, como se perceber o que se passara fosse a coisa mais importante do momento.
Mário entregou a mala de primeiros-socorros. Nuno um garrafão com água, logo seguido se Susana que carregava um tacho. Luisa despejou este sobre a perna ensanguentada.
- Mário, liga o aparelho de medir a tensão ao braço dele e põe-no a funcionar. – com o estetoscópio que pescou na mala procurou ouvir o coração, – E por favor, não gritem! - pediu
Segundos depois ordenou ao marido.
- Tira a mão, Vasco.
Assim que aliviou a pressão e desviou a mão um esguicho de sangue elevou-se vários centímetros. Para logo ser seguido de outro. E de outro. A cada batida do coração Luis esvaía-se em sangue. A um gesto de Luisa, Vasco voltou a pressionar a ferida. A sua mulher, desconsolada, ia dizendo.
- Apanhou a artéria femoral. Não sei se consigo fazer isto. Não sei se consigo fazer isto.
- Eu não... – Jorge saiu da sala a correr.
Com as mãos ensanguentadas Luisa rasgou o invólucro de um bisturi e outro de uma pinça. Anos antes enviara a Luis a lista com o material que deveria comprar para pôr naquela mala se queria algo melhor que pensos, compressas e adesivo.
Inês sussurrava palavras ao ouvido do marido, imperceptíveis no meio dos soluços.
A máquina apitou três vezes dizendo que não conseguia fazer uma leitura de tensão arterial. Mário desligou-a, voltou a ligá-la e carregou novamente no botão para reiniciar a medição. A braçadeira insuflável começou a crescer.
Luisa afastou o braço do marido e com uma rapidez incrível inseriu o bisturi na ferida de bala e cortou a carne. Rita sentiu-se mal ao ver tal corte, e só então se lembrou das suas filhas que num misto de curiosidade e agonia tentavam ver o que se passava. Pegou nelas pela mão e saiu para o frio do alpendre.
Luisa expôs a artéria femoral e com a pinça apertou-a e fechou-a numa dobra. A máquina apitou de novo.
- Não consigo apanhar a tensão.
- A hemorragia é muito grande. – as lágrimas apareceram pela primeira vez nos olhos de Luisa, enquanto usava de novo o estetoscópio. – Apesar de ter prendido a artéria... Nem sei se conseguiria reparar os danos. - ergueu os olhos para Inês. – Querida... o coração parou.
Inês gritou um “não” chorado, enquanto Luisa, vermelha de tanto sangue, a agarrou num abraço que queria abafar as convulsões de choro de ambas.
Mário, que estava ajoelhado junto ao corpo no pequeno espaço entre lareira e sofá, rodou o corpo e sentou-se com a cabeça entre os joelhos. Vasco deixou-se cair num cadeirão, chorando. Pedro saiu disparado correndo para a chuva. Nuno correu para a casa-de-banho, ajoelhando-se sobre a sanita com vómitos em seco. Susana entrou logo atrás, segurando-lhe a testa mas incapaz de suster as lágrimas que corriam dos seus olhos. Patrícia juntou-se a Rita e ambas abraçaram as raparigas incomodadas com o som do choro que preenchia todo o ambiente.
Os minutos correram enquanto cada um, à sua maneira, interiorizou a perda e lidou com a dor. Lá fora a chuva caía agora com maior intensidade.
Inês foi dormir à força com um forte calmante que Luisa lhe injectou.
Mário e Rita recolheram ao quarto deitando-se com as suas filhas de permeio procurando acalmá-las.
Luisa e Patrícia entregaram-se ao cadáver, limpando-o, preparando-o e amortalhando-o com dois lençóis brancos.
Os outros começaram a limpar o sangue que se espalhara vertiginosamente pelo chão atingindo os sítios mais inatingíveis.
Pedro e Jorge continuavam na rua, perdidos na noite chuvosa.
Mais ninguém dormiu. Não falavam. A breve descrição dos factos que Vasco fizera fora conversa suficiente.
ADEUS
Depois da hora de almoço a chuva reapareceu, primeiro pouco mais que humidade condensada no ar, mas depois engrossando com o correr da tarde. Quando chegaram ao Monte das Murtas, pelas cinco da tarde, já a noite procurava o seu poiso, vinham todos encharcados, com um ar miserável.
Foram recebidos com excitação pelos companheiros que se acoitavam do mau tempo na casa aquecida pela bem alimentada lareira. Pedro e Patrícia logo se ofereceram para ir tratar do boi, enquanto calor e roupa seca eram oferecidos aos caminhantes. Entre beijos e abraços de boas-vindas Vasco conseguiu anunciar.
- Levem o boi mas deixem o porco.
- Qual porco?
- Na carroça está um javali que se cruzou connosco. Se calhar já vem tarde para o jantar, mas temos caça grossa para cozinhar.
Falava e caminhava para junto da lareira que lançava na casa um aroma a azinho.
- O sacana atacou-me, mas o Nuno acabou com ele. Graças a Deus.
As exclamações aumentaram enquanto Nuno e Mário carregavam com esforço o bicho para a cozinha.
- Mas o que pensam que estão a fazer? – gritou Inês – Tirem-me isso daqui. É tão grande e malcheiroso que não conseguimos estar cá dentro com ele.
- Então o que lhe fazemos?
- Levem-no para a rua, para o barracão, para onde quiserem, mas essa coisa não cabe dentro de casa.
As expressões de desânimo dos dois carregadores contrariados sentiram-se na confusão frenética dos que apenas seguiam o animal e revelaram o esforço necessário para transportar tanta carne. Rita e Susana deram uma ajuda e os quatro, cada um pegando por uma pata, levaram o javali dependurado. Mesmo sob a chuva fria Filipa e Sandra seguiam, saltitando, o primeiro javali que alguma vez tinham visto. Inês ainda disse:
- Hoje não há carne. Vegetais no forno é o jantar. E já vai atrasado. – conclui virando-se para a bancada onde se espalhavam os ingredientes. Luisa entrou para a ajudar.
- Então como aconteceu isso? – perguntou Luis a Vasco que tentava aquecer as mãos na lareira.
- O Jorge topou qualquer movimento à frente. Depois fez o Javali sair do esconderijo à pedrada. Só que o sacana do animal em vez de fugir, decidiu vir atrás de mim. Como é duro que nem pedra os tiros de caçadeira que lhe acertei não o fizeram parar. Já me tinha derrubado quando o Nuno o abateu com dois tiros. Havias de ter visto. Foi fantástico. Com o javali em movimento o miúdo disparou duas vezes, certeiro, em cheio na cabeça.
- Aprendeu bem.
- Aliás, deixa-me devolver-te a pistola. Tem menos três balas. Ainda foi preciso um tiro de misericórdia.
Enquanto se afastava para ir pegar na mochila do filho que restava caída junto à porta da entrada, Jorge aproximou-se de Luis.
- Desculpa lá, Luis, mas porque não sabia eu que o puto levava uma pistola?
- Desculpa, devia tê-lo dito.
- Pois devias. Já para não discutir se não deveria ter sido eu a levá-la.
- Isso já não era discutível. Como se viu. O Nuno soube como usá-la.
- Também eu saberia. Porque raio não me dás uma pistola?
- Jorge, ... primeiro tenho que saber como a usas... eu não gosto de distribuir armas, não me sinto à vontade com isso.
Vasco reaproximou-se com a Glock na mão.
- Eu ataquei um javali com um machado de cortiça que à última da hora decidi meter na mochila. Achas que se soubesse que tínhamos uma nove milímetros eu tinha cometido tal loucura?
- Está aqui a arma. – entregou Vasco.
- Eu posso ficar com essa pistola.
- Nem pensar, Jorge.
- Neste momento, se não confias em mim, eu também não confio que a tua estratégia defensiva seja a melhor para este grupo.
- Como?
- Se houver qualquer problema tenho que te ir pedir uma arma e ficar à espera que nesse dia sejas simpático? Não me parece.
- Não te ponhas com merdas. A caçadeira está sempre à disposição de todos, ali por cima da porta da entrada. É mais do que suficiente. As pistolas e as G-3 ficam à minha guarda, em local seguro.
- G-3?!
Só então Luis se apercebeu que revelara a existência das metralhadoras numa das piores alturas.
- Sim. Tenho duas G-3 cá em casa.
- Com duas pistolas, duas G-3 e uma caçadeira mandaste-me para Estremoz de mãos a abanar?
- Ouve... vocês não...
- Não é “vocês”, - interrompeu Jorge elevando o tom de voz, - sou eu. Eu fui de mãos a abanar. Que me interessa se o puto tinha a pistola. Eu tinha um machado porque o levei à última da hora.
- E pelos vistos ias muito bem. – culminou Luis com o seu tom mais autoritário.
Levantando as mãos com um gesto rápido, Jorge agarrou a pistola que Luis segurava à sua frente também com ambas as mãos. Por reflexo puxou-a para si, para impedir Jorge de se apoderar da arma, mas o insucesso de tal acção fez com que ficassem cada um a puxá-la para o seu lado.
- Eu fico com essa...
- Nem penses...
- Mas vocês estão doidos? – gritou Vasco, - Cuidado que isso pode disparar.
No preciso momento em que Vasco gritava esta última palavra uma detonação tudo abafou.
As pistolas Glock têm uma característica curiosa. Não têm uma patilha de segurança clássica que funcione como travão, que numa determinada posição fixe o percutor e impeça o disparo acidental. Assim, estão sempre prontas a disparar, caso tenham uma munição na câmara, desde que para tanto seja posto um dedo no gatilho. É na própria face do gatilho que se encontra uma patilha que tem que ser pressionada para haver disparo. Necessariamente, quando se carrega no gatilho, destrava-se a arma. Desta forma ela pode cair, levar uma pancada ou sofrer qualquer outro acidente de percurso que não se disparará por acidente. Em contrapartida, é extremamente rápido, instantâneo mesmo, ultrapassar a segurança e disparar.
Precisamente, naquela insensata disputa pela pistola, um dedo de Luis ou de Jorge encostou-se ao gatilho e no puxa para cá, empurra para lá a arma libertou uma das suas letais descargas.
Enquanto ecoava a detonação Jorge, Luis e Vasco pararam, os três olhando para a Glock disputada a quatro mãos.
- Foda-se! – gemeu Luis. A pistola foi largada precipitando-se para o chão, inofensiva. Luis levou as mãos à virilha e caiu. Jorge olhou, mas foi Vasco quem primeiro viu o sangue.
- Luisa! – gritou, - Depressa, o Luis foi ferido. Luisa já estava ao seu lado. O tiro ouvira-se por todo o monte e as duas mulheres que estavam na cozinha chegaram em duas passadas. Inês gritou e caiu de joelhos para agarrar a cabeça de Luis que depositou no colo. Luisa lançou-se à perna esquerda cujas calças eram já uma poça de sangue.
- Depressa, traz-me a tesoura da cozinha. E panos da gaveta. – disse para Vasco que corria para a cozinha de onde regressou em segundos.
- Eu não... Eu não... Eu não... – gemia Jorge, de pé, mãos entrelaçadas à sua frente, como se cada uma segurasse a outra para não a deixar fazer qualquer asneira.
Luisa cortou as calças de Luis e com os panos tentou limpar o sangue, procurando a ferida.
- Merda, merda. – ia dizendo à medida que se apercebia dos esguichos de sangue que se elevavam da parte interna da coxa.
A porta abriu-se de rompante, entrando o resto do grupo que acorrera desde o barracão assim que ouviu o tiro.
- O que se passa?
- O que foi isto?
- O que é que aconteceu? – as perguntas sobrepuseram-se respondidas apenas pelo caótico cenário que se desenvolvia no chão em frente da lareira.
- Aqui, Vasco, a ferida é aqui. Põe aqui a tua mão e faz força. Toda a força que puderes.
“Alguém me traga a mala dos primeiros-socorros. E água, muita água, uma panela, um garrafão. Preciso de água.
“Luis! – gritou – Fica comigo, Luis, não te deixes desmaiar...
- Ele já não reage – chorou Inês. E gritou, - Luis! Reage, Luis! Sou eu, Luis! Luis!
- Eu não… Eu não… Eu não...
- Como aconteceu isto? – insistiu Rita, como se perceber o que se passara fosse a coisa mais importante do momento.
Mário entregou a mala de primeiros-socorros. Nuno um garrafão com água, logo seguido se Susana que carregava um tacho. Luisa despejou este sobre a perna ensanguentada.
- Mário, liga o aparelho de medir a tensão ao braço dele e põe-no a funcionar. – com o estetoscópio que pescou na mala procurou ouvir o coração, – E por favor, não gritem! - pediu
Segundos depois ordenou ao marido.
- Tira a mão, Vasco.
Assim que aliviou a pressão e desviou a mão um esguicho de sangue elevou-se vários centímetros. Para logo ser seguido de outro. E de outro. A cada batida do coração Luis esvaía-se em sangue. A um gesto de Luisa, Vasco voltou a pressionar a ferida. A sua mulher, desconsolada, ia dizendo.
- Apanhou a artéria femoral. Não sei se consigo fazer isto. Não sei se consigo fazer isto.
- Eu não... – Jorge saiu da sala a correr.
Com as mãos ensanguentadas Luisa rasgou o invólucro de um bisturi e outro de uma pinça. Anos antes enviara a Luis a lista com o material que deveria comprar para pôr naquela mala se queria algo melhor que pensos, compressas e adesivo.
Inês sussurrava palavras ao ouvido do marido, imperceptíveis no meio dos soluços.
A máquina apitou três vezes dizendo que não conseguia fazer uma leitura de tensão arterial. Mário desligou-a, voltou a ligá-la e carregou novamente no botão para reiniciar a medição. A braçadeira insuflável começou a crescer.
Luisa afastou o braço do marido e com uma rapidez incrível inseriu o bisturi na ferida de bala e cortou a carne. Rita sentiu-se mal ao ver tal corte, e só então se lembrou das suas filhas que num misto de curiosidade e agonia tentavam ver o que se passava. Pegou nelas pela mão e saiu para o frio do alpendre.
Luisa expôs a artéria femoral e com a pinça apertou-a e fechou-a numa dobra. A máquina apitou de novo.
- Não consigo apanhar a tensão.
- A hemorragia é muito grande. – as lágrimas apareceram pela primeira vez nos olhos de Luisa, enquanto usava de novo o estetoscópio. – Apesar de ter prendido a artéria... Nem sei se conseguiria reparar os danos. - ergueu os olhos para Inês. – Querida... o coração parou.
Inês gritou um “não” chorado, enquanto Luisa, vermelha de tanto sangue, a agarrou num abraço que queria abafar as convulsões de choro de ambas.
Mário, que estava ajoelhado junto ao corpo no pequeno espaço entre lareira e sofá, rodou o corpo e sentou-se com a cabeça entre os joelhos. Vasco deixou-se cair num cadeirão, chorando. Pedro saiu disparado correndo para a chuva. Nuno correu para a casa-de-banho, ajoelhando-se sobre a sanita com vómitos em seco. Susana entrou logo atrás, segurando-lhe a testa mas incapaz de suster as lágrimas que corriam dos seus olhos. Patrícia juntou-se a Rita e ambas abraçaram as raparigas incomodadas com o som do choro que preenchia todo o ambiente.
Os minutos correram enquanto cada um, à sua maneira, interiorizou a perda e lidou com a dor. Lá fora a chuva caía agora com maior intensidade.
Inês foi dormir à força com um forte calmante que Luisa lhe injectou.
Mário e Rita recolheram ao quarto deitando-se com as suas filhas de permeio procurando acalmá-las.
Luisa e Patrícia entregaram-se ao cadáver, limpando-o, preparando-o e amortalhando-o com dois lençóis brancos.
Os outros começaram a limpar o sangue que se espalhara vertiginosamente pelo chão atingindo os sítios mais inatingíveis.
Pedro e Jorge continuavam na rua, perdidos na noite chuvosa.
Mais ninguém dormiu. Não falavam. A breve descrição dos factos que Vasco fizera fora conversa suficiente.
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