8.12.08

Desertos (XXI)

(epílogo)
20
DESERTOS

- O Luis sempre teve um pressentimento qualquer com o Jorge. Achava-o desequilibrado, impulsivo, perigoso. Por isso era tão relutante em dar-lhe uma arma. Mais facilmente confiava no Nuno.
- Está bem, pai, mas pelo que contaste o tiro foi acidental, e mesmo estúpido.
- Estúpido ou não, eu sempre fui contra a forma como vocês falavam e usavam as armas. E tinha razão. Vejam bem no que deu. – Luisa interveio. Estavam todos apinhados na cozinha partilhando chá quente. Ninguém queria ir para a sala onde se sentia a morte.
- Sim, mãe... mas se não fosse aquela mesma pistola eras tu a viúva. Caso não te lembres, pouco antes aquela arma salvou o pai.
- As armas não salvam nem matam. As pessoas que as empunham é que salvam ou matam. – Patrícia acreditava a fundo no que dizia, não obstante ser um lugar-comum. – Por isso nunca me preocupei com caçadeiras ou pistolas neste monte. Confiava em vocês e no uso que lhes dariam. O que aconteceu foi um estúpido acidente.
- Se o Jorge não tem querido agarrar a arma... – começou Vasco.
- Se o Luis tivesse sido claro com as armas desde que cá chegámos... – contrapôs Patrícia.
- Se, se... o que importa é que Luis morreu.
Ouviram a porta abrir-se e todos olharam para a entrada. Já o céu trocava o manto negro pelo azul quando Pedro reentrou. A chuva desistira pelas três da manhã levando consigo as nuvens e dera lugar ao frio que agora gelava os campos. Pedro estava seco, quente e não denotava ter passado a noite ao relento.
- Pedro, por onde tens andado.
- O Jorge já voltou?
- Não. E tu, onde estiveste?
- No barracão, entre os animais. Não me perguntem porquê, mas reconfortou-me. – Entrou na cozinha, avançou para o bule e serviu-se de chá fumegante. – Por onde andará o Jorge?
- Já me perguntei isso, mas achei melhor deixá-lo ir. – todos olharam para Susana. – Neste momento deve andar por aí que nem um doido.
- Mas está frio. Muito frio.
- Ele aguenta. Se não voltar pela manhã, então deveremos procurá-lo. Não antes.
- Se tu o dizes...
- Certamente que o Jorge se culpa pela morte do Luis.
- Que diabo!, eu também o culpo! – reagiu Pedro.
- Mas não podemos ir por aí. – atalhou Vasco.
- Porquê? Deixamos isto ficar assim, sem consequências?
- Que consequências, Pedro? Vamos julgá-lo? Puni-lo? Inventar o nosso tribunal privado?
- Não sei... mas não me parece bem...
- Estamos todos a falar a quente. Depois pensamos nisso. – serenou Patrícia.
- Como será que a Inês vai reagir ao Jorge? – a dúvida era de Luisa.
- Quanto tempo ainda dormirá?
- Com a dose que lhe dei? Aí até ao meio-dia.
- Temos que enterrá-lo já hoje.
- Onde é que ...
O som da porta da rua interrompeu a pergunta. De novo todos se chegaram à porta da cozinha e olharam para a entrada. Jorge, todo encharcado, tiritando de frio, roxo, olhava para a lareira à frente da qual tudo acontecera. A luz acesa e porta aberta do quarto de Vasco e Luisa foram claros para si e ali encontrou a mortalha de Luis.
Na cozinha Pedro foi detido por Vasco, que entendeu deixar a iniciativa a Jorge. Amontoados viram-no entrar no quarto. Aguardaram em silêncio.
Jorge sentou-se no chão ao lado da cama onde repousava o cadáver. Com um braço estendido tocou com a ponta dos dedos nos pés do defunto envolto em lençóis. Deixou-se ficar assim.
Lá fora o galo cantou, anunciando a aurora. Logo após, como se tivesse sido acordado pelo madrugador despertador, Mário saiu do quarto deixando mulher e filhas enroladas nos sonhos. Viu todos juntos à porta da cozinha e sentiu Jorge no quarto à sua esquerda. Foi até aí e disse:
- Então, Jorge... em que pensas tu?
Jorge ergueu-se pesadamente e reentrou na sala, olhos presos à biqueira das botas.
- Desculpem todos. Matei o Luis porque sou estúpido.
- Disso não restam dúvidas. – um toque de Vasco calou Pedro, inconformado.
- E agora, Jorge? – Vasco procurou o seu olhar mas não conseguia apanhá-lo, fugido que estava.
- A Inês está onde?
- A dormir.
- Melhor. Não sou capaz da enfrentar.
- Mas vais ter que o fazer.
- Não vou, não. Chamem-lhe cobardia ou simplesmente insensibilidade, mas eu não conseguirei nunca olhá-la de frente. Como também não vos consigo encarar. – elevou os olhos por um instante mas de novo os escondeu olhando o chão. A voz fugia-lhe. Ninguém se mexeu. – A minha atitude foi estúpida, impensada e ninguém com dois palmos de testa agarra uma arma com as duas mãos como eu fiz. Num mundo normal provavelmente iria preso.
“Mas nós não vivemos num mundo normal. Eu sinto em mim uma culpa tão grande que não consigo fazer isto, ficar convosco, avançar deixando para trás este infortúnio. Nunca algum de nós conseguirá esquecer o que se passou aqui hoje.
“Andei toda a noite a correr os montes e a cada passo que me afastava sentia mais difícil o retorno. Só voltei para não desaparecer sem vos mostrar o meu arrependimento. Mas vou pegar agora mesmo na minha tralha e sair daqui.
Jorge não esperava que o tentassem demover, e nisso acertou nas previsões. O silêncio continuou. Deu três passos em direcção a Susana.
- Vou para Sul, para a costa algarvia. Pelo menos sempre haverá peixe para comer. – ergueu olhar e focou-a nos olhos. Procurou segurar-lhe uma mão mas sentiu-a fugir, retrair-se. – Por favor, Susana, vem comigo.
Ela abanou lentamente a cabeça, baixando os olhos.
- Não consigo, Jorge. Não consigo.
- Não me deixes ir sozinho. - o tom de voz de Jorge revelava que o choro estava ali, num nó na garganta. – Vem comigo.
- Não. Agora então é que já não faz sentido algum. – Susana deu dois passos atrás, refugiando-se junto do resto do grupo. Jorge avançou para ela insistindo, mas Nuno pôs-se de permeio.
- Ela já disse que fica. – o tom determinado e grave da sua voz interrompeu a lamúria pedinte de Jorge. Ficaram cara a cara.
- Percebo. – terminou Jorge, virando-se para entrar no quarto. – Percebo. – repetiu.
Nuno tomou Susana nos braços confortando-a com um forte aperto ao qual ela se entregou. Nesse preciso momento Luisa sentiu que o filho não era mais o seu menino e que completara o processo que nos últimos tempos o transformara num homem adulto.
O desconforto que se fazia sentir enquanto Jorge arrumava uma mochila revelava-se no silêncio e na forma como cada um evitava o olhar do próximo. A lareira, que poucas horas antes rugira com a lenha em chamas era agora um quente e silencioso braseiro. Patrícia rompeu a pausa.
- Não me levem a mal... – foi apenas o que disse. Passou por Susana a quem fez uma festa, e entrou no quarto onde estava Jorge. Ouviram-na dizer em tom de ordem.
- Espera por mim. Vou contigo.

É curioso como as pessoas sabem coisas que se lhes perguntassem jurariam desconhecer. Quando Nuno abraçou Susana os seus pais e Pedro de imediato souberam que estava ali um elo mais forte do que fora revelado até então.
Quando Patrícia mostrou que ia partir acompanhando Jorge, também todos souberam que ela não estava satisfeita com a vida no monte e esta era a última oportunidade, possivelmente a única, de o abandonar.
Já o sol se via no céu, mas ainda a geada pintava de branco os campos quando os dois partiram. Sem uma palavra de despedida arrancaram lado a lado descendo o caminho enlameado. Para os dois uma nova aventura nascia segundo os passos do caminho. Para os que ficavam era preciso lutar contra a dor que todo o monte iria lembrar.
A todo o momento um local, um objecto, uma acção lembrariam Luis. Ele estava em todo o lado, naquele que fora o grande projecto da sua vida. Havia, contudo, que erguer o queixo, secar as lágrimas e manter o monte a funcionar. Manter aquele grupo a funcionar. Porque ali isolados, rodeados de cidades, aldeias e campos desertos, apenas se tinham uns aos outros para lutar pelo futuro.
Futuro que poderia ter mil e um desfechos, e tinha que ser vivido dia-a-dia.
(fim da publicação)

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