(continuação)
16
DESGASTE
Durante uma semana Nuno ficou na cama por causa das feridas na perna esquerda e nas mãos, que precisaram de ser suturadas. Eram as únicas que inspiravam cuidados e graças à atenção da sua mãe não infectaram como seria de espera, provenientes que foram de dentes conspurcados de animais em estado selvagem.
Por duas vezes nesse período Susana descobriu minutos de solidão na pequena casa e visitou-o para juntos encontrarem o conforto que apenas recebiam um do outro. Aquilo que começara como uma aventura excitante e proibida tornou-se, no espaço de uma semana, numa preocupante relação.
- A nossa qualidade de vida está a enfrentar um desgaste notório. – A constatação partiu de Luisa, em conversa com os donos do Monte das Murtas. O dia estava frio, como se via pelo vapor que se condensava enquanto respiravam, e volta e meia grossas gotas precipitavam-se num aguaceiro curto mas feroz. Estavam sentados junto do que restava do alpendre original, ora nele se abrigando da chuva ora dele saindo para o sol da manhã, incapaz de aquecer mais para além de um morno aconchego.
- Não estávamos preparados para tanta gente.
- Preocupa-me essencialmente a higiene. Já não temos papel higiénico. Há dias que a fossa se queixa de tanta emissão. Temo que quando o calor voltar o cheiro dentro de casa se torne insuportável.
- Isso arranja-se. Será, literalmente, um trabalho de merda, - Luis riu, - mas poderemos aumentar a fossa. Ou fazer uma nova fossa para uma segunda casa-de-banho exterior.
- Óptimo! Isso é coisa para os homens tratarem logo que possam. Não peçam ajuda, está bem? – disse sorrindo – Mas há outras questões a assombrar o meu pensamento. Que vamos nós fazer?
- Como assim? – interrogou Inês.
- O que vamos nós fazer? – repetiu – Da nossa vida? É isto. Só isto? Trabalhamos para comer e aproveitamos uns bocadinhos de lazer? Talvez os mais velhos como nós se satisfaçam, mas e os outros? O Nuno, as miúdas da Rita... mesmo a Patrícia, ainda tão nova... Contentar-se-ão eles com isto?
- Acho que estou a chegar ao que tu queres dizer? Ficámos reduzidos a este horizonte?
- É isso mesmo, Luis. Eles não podem ter vida própria, crescer, amar, vencer, se não tiverem ao seu dispor desafios. E se assim não crescerem nunca se tornarão independentes. Ou relacionarão com outras pessoas.
- Preocupa-te o Nuno, não é?
- Sinto-o crescer. Tornar-se homem. E não há aqui ninguém da idade dele. Outro rapaz com quem partilhar as dores de crescimento. Outra mulher pela qual se possa apaixonar. O que vamos fazer? “Casá-lo” desde já com uma das miúdas e esperar que ela cresça durante dez anos? Meu Deus, seguramente não demos um passo atrás tão gritante.
- Curiosas são as dores de mãe. Há uns anos atrás as tuas preocupações seriam exactamente as contrárias. Quererias conhecer os amigos e namoradas do miúdo, e estar sempre presente, temendo o momento em que ele perderia a virgindade com “uma qualquer”. Olharias de lado as miúdas em biquini de riso largo e ar experiente com quem ele convivesse na praia e de cada vez que ele pedisse para ir acampar ou dormir em casa de outro colega aceitarias com relutância sofrendo durante a sua ausência.
“Hoje preocupas-te por ele não ter uma mulher ou sequer a hipótese da escolher.
- Pois é, Luis, os temores do meu filho adolescente são certamente diferentes daqueles que tiveste há trinta anos.
- E que riscos há nisso? – questionou Inês – Poderá o Nuno ficar psicótico?
- Pior que isso. Poderá querer sair daqui, partir em busca do desafio, de gente desconhecida, de outros horizontes.
- Os tempos são outros, mas sempre as crias abandonarão o ninho e as mães terão dificuldade em abrir mão delas. – Inês sacudiu a cabeça abanando os cabelos castanhos. Ali encostada ao pilar do alpendre, com a luz a reflectir-se na sua pele clareada pelo Inverno, revelava o lado mais sensual do seu metro e setenta. As pernas compridas, magras, escondiam-se nas calças que revelavam as ancas largas. Apesar dos agasalhos era notório o seu busto arredondado, contrastando com a magreza do pescoço e da face. A boca grande de lábios finos fugia muitas vezes num esgar para a esquerda, mesmo quando sorria. As sobrancelhas fortes acentuavam a autoridade do rosto, bonito e simpático.
- Mas para além disso há outras coisas. – continuou Luisa, -As famílias, mesmo as numerosas, têm mecanismos de sangue que lhes permitem superar os atritos. E ainda assim podem ser implacáveis, intolerantes, cruéis. Nós já começamos a abalar com a pressão. Já notaram o aumento das discussões?
- Como assim? – o olhar inquisidor de Luis mostrava pela primeira vez durante aquela conversa que estava surpreendido.
- Desde o fim do Verão, com o começo das chuvas, do pousio, temos menor actividade com que ocupar os nossos tempos e aumentado o período de permanência dentro de casa. A casa é muito pequena para tanta gente. Não há privacidade, e isso nota-se no estado de irritabilidade que cada um demonstra.
“Mesmo vocês os dois... Já vos vi a discutir duas vezes esta semana e sempre por causa de ninharias.
- Bom, não é bem assim...
- É sim, Luis, - interrompeu Inês, - por acaso até é. Discutimos por causa da identidade de uma actriz num filme, e estivemos a discutir por causa da arrumação da cozinha.
- Mas vocês superaram bem isso. Vão superando mas garanto-vos que vão acumulando também o respectivo desgaste. Já o Jorge e a Susana vão bem pior.
- Vão?
- É típico dos homens não se aperceberem. A Inês decerto já apanhou isto, não? – continuou enquanto Inês anuía com um gesto de cabeça. – Eles não gritam. Mas são bravos na argumentação. Azedos, agressivos, mesquinhos como só quem está perturbado o pode ser. É da pressão claustrofóbica. E não vejo futuro brilhante para aqueles dois.
“E depois temos o Pedro...tenho-o visto com uma daquelas neuras.
- Eh, pá... quem te ouvir julgará que estamos à beira do colapso nervoso.
- E se calhar até estamos. Ou então sou eu que me sinto presa a este reduzido universo.
- Deixa estar, Luisa, que agora fiquei com umas ideias. Tens razão quando dizes que o nosso mundo é muito pequeno. Precisamos do alargar. E precisamos de nos ocupar e expandir. Vou pensar no assunto e hoje, à hora do jantar, discutiremos algumas propostas.
Nesse dia, à volta de bifes de porco e batatas, Luis expôs delicadamente e sem personalizar as dificuldades que encaravam enquanto comunidade. Dando a todos a oportunidade de se pronunciarem, propôs objectivos para criar trabalho, ocupação e aumentar as perspectivas de intimidade.
Iriam projectar e construir novas casas, pequenas unidades habitacionais para cada núcleo familiar. Assim conseguiriam dormir fora da casa principal apesar de a esta terem que regressar para as refeições por não haver condições para construir novas cozinhas. Também a sala de estar comum manter-se-ia na casa grande, restando-se as novas habitações por um pequeno quarto com espaço para arrumos e antecâmara que permitiriam a cada um encontrar o seu espaço privado.
Para tal empreendimento seria necessário recuperar material de outras casas abandonadas, como madeira, janelas, portas, telhas, fios eléctricos e mobiliário.
Também iriam em busca de loiças para construir uma segunda casa-de-banho autónoma, para a qual seria construída nova fossa.
Todo o planeamento deveria ser exaustivo e cuidadoso, pois que teriam que sair em busca do material. Desta vez a obra era demasiado alargada para optar pela construção em adobe, pelo que teriam que pensar em madeira e muita, para erguer as novas casas.
Enquanto a ideia entusiasmava todo o grupo, foi igualmente proposto que se visitasse o Monte Branco para saber se Horácio Sousa e os seus seguidores se tinham instalado e avaliar as possibilidades de relacionamento futuro.
E já que iriam a Estremoz em busca de matéria-prima, aí tentariam recolher novas do estado do país.
A reunião prolongou-se por horas de excitação na perspectiva de construir algo de novo, de crescer e fugir ao marasmo em que tinham entrado. Ao adormecer todos, sem excepção, sonharam com um novo mundo parecido com aquele que o passado ora guardava.
DESGASTE
Durante uma semana Nuno ficou na cama por causa das feridas na perna esquerda e nas mãos, que precisaram de ser suturadas. Eram as únicas que inspiravam cuidados e graças à atenção da sua mãe não infectaram como seria de espera, provenientes que foram de dentes conspurcados de animais em estado selvagem.
Por duas vezes nesse período Susana descobriu minutos de solidão na pequena casa e visitou-o para juntos encontrarem o conforto que apenas recebiam um do outro. Aquilo que começara como uma aventura excitante e proibida tornou-se, no espaço de uma semana, numa preocupante relação.
- A nossa qualidade de vida está a enfrentar um desgaste notório. – A constatação partiu de Luisa, em conversa com os donos do Monte das Murtas. O dia estava frio, como se via pelo vapor que se condensava enquanto respiravam, e volta e meia grossas gotas precipitavam-se num aguaceiro curto mas feroz. Estavam sentados junto do que restava do alpendre original, ora nele se abrigando da chuva ora dele saindo para o sol da manhã, incapaz de aquecer mais para além de um morno aconchego.
- Não estávamos preparados para tanta gente.
- Preocupa-me essencialmente a higiene. Já não temos papel higiénico. Há dias que a fossa se queixa de tanta emissão. Temo que quando o calor voltar o cheiro dentro de casa se torne insuportável.
- Isso arranja-se. Será, literalmente, um trabalho de merda, - Luis riu, - mas poderemos aumentar a fossa. Ou fazer uma nova fossa para uma segunda casa-de-banho exterior.
- Óptimo! Isso é coisa para os homens tratarem logo que possam. Não peçam ajuda, está bem? – disse sorrindo – Mas há outras questões a assombrar o meu pensamento. Que vamos nós fazer?
- Como assim? – interrogou Inês.
- O que vamos nós fazer? – repetiu – Da nossa vida? É isto. Só isto? Trabalhamos para comer e aproveitamos uns bocadinhos de lazer? Talvez os mais velhos como nós se satisfaçam, mas e os outros? O Nuno, as miúdas da Rita... mesmo a Patrícia, ainda tão nova... Contentar-se-ão eles com isto?
- Acho que estou a chegar ao que tu queres dizer? Ficámos reduzidos a este horizonte?
- É isso mesmo, Luis. Eles não podem ter vida própria, crescer, amar, vencer, se não tiverem ao seu dispor desafios. E se assim não crescerem nunca se tornarão independentes. Ou relacionarão com outras pessoas.
- Preocupa-te o Nuno, não é?
- Sinto-o crescer. Tornar-se homem. E não há aqui ninguém da idade dele. Outro rapaz com quem partilhar as dores de crescimento. Outra mulher pela qual se possa apaixonar. O que vamos fazer? “Casá-lo” desde já com uma das miúdas e esperar que ela cresça durante dez anos? Meu Deus, seguramente não demos um passo atrás tão gritante.
- Curiosas são as dores de mãe. Há uns anos atrás as tuas preocupações seriam exactamente as contrárias. Quererias conhecer os amigos e namoradas do miúdo, e estar sempre presente, temendo o momento em que ele perderia a virgindade com “uma qualquer”. Olharias de lado as miúdas em biquini de riso largo e ar experiente com quem ele convivesse na praia e de cada vez que ele pedisse para ir acampar ou dormir em casa de outro colega aceitarias com relutância sofrendo durante a sua ausência.
“Hoje preocupas-te por ele não ter uma mulher ou sequer a hipótese da escolher.
- Pois é, Luis, os temores do meu filho adolescente são certamente diferentes daqueles que tiveste há trinta anos.
- E que riscos há nisso? – questionou Inês – Poderá o Nuno ficar psicótico?
- Pior que isso. Poderá querer sair daqui, partir em busca do desafio, de gente desconhecida, de outros horizontes.
- Os tempos são outros, mas sempre as crias abandonarão o ninho e as mães terão dificuldade em abrir mão delas. – Inês sacudiu a cabeça abanando os cabelos castanhos. Ali encostada ao pilar do alpendre, com a luz a reflectir-se na sua pele clareada pelo Inverno, revelava o lado mais sensual do seu metro e setenta. As pernas compridas, magras, escondiam-se nas calças que revelavam as ancas largas. Apesar dos agasalhos era notório o seu busto arredondado, contrastando com a magreza do pescoço e da face. A boca grande de lábios finos fugia muitas vezes num esgar para a esquerda, mesmo quando sorria. As sobrancelhas fortes acentuavam a autoridade do rosto, bonito e simpático.
- Mas para além disso há outras coisas. – continuou Luisa, -As famílias, mesmo as numerosas, têm mecanismos de sangue que lhes permitem superar os atritos. E ainda assim podem ser implacáveis, intolerantes, cruéis. Nós já começamos a abalar com a pressão. Já notaram o aumento das discussões?
- Como assim? – o olhar inquisidor de Luis mostrava pela primeira vez durante aquela conversa que estava surpreendido.
- Desde o fim do Verão, com o começo das chuvas, do pousio, temos menor actividade com que ocupar os nossos tempos e aumentado o período de permanência dentro de casa. A casa é muito pequena para tanta gente. Não há privacidade, e isso nota-se no estado de irritabilidade que cada um demonstra.
“Mesmo vocês os dois... Já vos vi a discutir duas vezes esta semana e sempre por causa de ninharias.
- Bom, não é bem assim...
- É sim, Luis, - interrompeu Inês, - por acaso até é. Discutimos por causa da identidade de uma actriz num filme, e estivemos a discutir por causa da arrumação da cozinha.
- Mas vocês superaram bem isso. Vão superando mas garanto-vos que vão acumulando também o respectivo desgaste. Já o Jorge e a Susana vão bem pior.
- Vão?
- É típico dos homens não se aperceberem. A Inês decerto já apanhou isto, não? – continuou enquanto Inês anuía com um gesto de cabeça. – Eles não gritam. Mas são bravos na argumentação. Azedos, agressivos, mesquinhos como só quem está perturbado o pode ser. É da pressão claustrofóbica. E não vejo futuro brilhante para aqueles dois.
“E depois temos o Pedro...tenho-o visto com uma daquelas neuras.
- Eh, pá... quem te ouvir julgará que estamos à beira do colapso nervoso.
- E se calhar até estamos. Ou então sou eu que me sinto presa a este reduzido universo.
- Deixa estar, Luisa, que agora fiquei com umas ideias. Tens razão quando dizes que o nosso mundo é muito pequeno. Precisamos do alargar. E precisamos de nos ocupar e expandir. Vou pensar no assunto e hoje, à hora do jantar, discutiremos algumas propostas.
Nesse dia, à volta de bifes de porco e batatas, Luis expôs delicadamente e sem personalizar as dificuldades que encaravam enquanto comunidade. Dando a todos a oportunidade de se pronunciarem, propôs objectivos para criar trabalho, ocupação e aumentar as perspectivas de intimidade.
Iriam projectar e construir novas casas, pequenas unidades habitacionais para cada núcleo familiar. Assim conseguiriam dormir fora da casa principal apesar de a esta terem que regressar para as refeições por não haver condições para construir novas cozinhas. Também a sala de estar comum manter-se-ia na casa grande, restando-se as novas habitações por um pequeno quarto com espaço para arrumos e antecâmara que permitiriam a cada um encontrar o seu espaço privado.
Para tal empreendimento seria necessário recuperar material de outras casas abandonadas, como madeira, janelas, portas, telhas, fios eléctricos e mobiliário.
Também iriam em busca de loiças para construir uma segunda casa-de-banho autónoma, para a qual seria construída nova fossa.
Todo o planeamento deveria ser exaustivo e cuidadoso, pois que teriam que sair em busca do material. Desta vez a obra era demasiado alargada para optar pela construção em adobe, pelo que teriam que pensar em madeira e muita, para erguer as novas casas.
Enquanto a ideia entusiasmava todo o grupo, foi igualmente proposto que se visitasse o Monte Branco para saber se Horácio Sousa e os seus seguidores se tinham instalado e avaliar as possibilidades de relacionamento futuro.
E já que iriam a Estremoz em busca de matéria-prima, aí tentariam recolher novas do estado do país.
A reunião prolongou-se por horas de excitação na perspectiva de construir algo de novo, de crescer e fugir ao marasmo em que tinham entrado. Ao adormecer todos, sem excepção, sonharam com um novo mundo parecido com aquele que o passado ora guardava.
(continua)
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