30.11.08

Desertos (XII)

(continuação)
11
BANHOS


- Já viram que estamos aqui juntos há cinco meses e pouco sabemos uns dos outros?
Nuno sorria com a água a escorrer-lhe do cabelo escuro enquanto mantinha os braços e as pernas em movimento para não se afundar.
- Fala por ti. Eu até estou bem informada. – na fresca albufeira dos Cardeais Patrícia nadava rodopiando à volta do rapaz.
- A sério. Vocês as duas são as pessoas mais próximas de mim em termos de idade.
- Achas? Então a Filipa e a Sandra não estão mais próximas da tua idade? – riu Susana, saltitando nas pontas dos pés para manter apenas a cabeça à tona.
Incomodado, Nuno foi rápido na resposta.
- Elas são miúdas. Pensam em brincar com bonecas e nem sequer entraram na adolescência, ao passo que eu...
- Em que pensas tu? – o desafio de Susana atingiu-o com a força do olhar fixo que aguardava a resposta. Nuno corou. Quis manter o olhar, mas não foi capaz. Desviou-o e engoliu em seco, procurando uma resposta falsa mas não óbvia que o salvasse do embaraço.
Patrícia arrematou, cruel:
- Em que pensam os rapazes aos dezassete anos? Em sexo, logicamente. – e, dito isto, aproximou-se por detrás, agarrou-o pelo pescoço, entrelaçou as suas pernas na cintura de Nuno e exclamou junto do seu ouvido, - Não é!?
O rapaz esquivou-se deixando-se afundar. Sentindo-se encurralado pela provocação com a qual não conseguia lidar, escudou-se nadando sob a água para emergir mais adiante. Deu umas braçadas até à margem e atirou-se para o chão de seixos rolados. Dentro de água as duas mulheres aproximaram-se e trocaram palavras baixas.
- Estás a meter-te com ele porquê?
- Porquê? Talvez por ser o único homem disponível na minha vida, e até ser giro.
Patrícia sempre fora comprida e magra, gozada por ser mais alta que os rapazes da sua idade e não ter curvas no corpo para os encantar. Era bonita, com lábios finos e maçãs do rosto salientes enfeitadas de suaves sardas, e cabelo loiro, que sempre usara curto, a chamar a atenção para os olhos verde escuros. O fato de banho que envergava era curto e largo, mas graças à sua elasticidade lá cumpria a missão, cobrindo a pele clara igualmente sardenta. O seu sorriso era permanente, e disfarçava as olheiras que nunca faltavam quando dormia menos de sete horas por noite.
Perante a sua resposta, o ar de espanto, muito próximo de ofendido, revelou-se na expressão de Susana.
- Como disponível? Ele tem dezassete anos!
- E eu tenho trinta. E então, nunca ouviste falar de relações com diferenças de idade?
- Não podes estar a falar sério.
- Não, não estou. – sorriu com um toque de maldade. – Quer dizer... se tivesse a oportunidade de ser a sua primeira mulher, percebes?, não me importaria nada. Mas só isso. No fundo sempre preferi homens mais velhos, e o Nuno é muito jovem. Mas é um rapaz muito atraente e com um potencial...
- Que alívio. Por momentos pensei que estavas a delirar.
- A delirar ou não, Susana, sinto a falta dos tempos dos flirts, quando andava na escola e a vida corria sem sobressaltos. Quando vivia com os pais e namorava à porta fechada no quarto, sempre arriscando ir mais longe apesar de a qualquer momento a minha mãe poder abrir a porta. Sinto falta das boleias e de nada me preocupar a não ser com as intrigas e os namoros. Quando tinha a idade do Nuno nem sabia o que era um monte alentejano. Mas já tinha ido para a cama com dois dos meus namorados. E eles também tinham dezassete, dezoito anos.
“Estou cansada de viver com medo, como acontecia em Lisboa antes de virmos para aqui. Mas também estou cansada de trabalhar como aqui tenho que o fazer. Dos porcos, das cabras, das terras e das sementes, dos caules e da rega, da loiça e da comida. Estou farta.
“Sinto-me cansada deste minúsculo universo de gente que tenho à minha volta, sem caras novas para conhecer ou para me surpreender. Cansada de seres a única pessoa com quem posso falar disto e o Nuno o único rapaz com quem posso brincar. Estou tensa, não me divirto, e já não vou para a cama com um homem vai para quatro anos.
Susana ouviu e tentou aligeirar a conversa e a disposição da amiga.
- Ora, aí tens. Tensão sexual acumulada. E saudades da vida metropolitana de adolescente. Não sei, Patrícia, mas esses são sintomas de uma condição para a qual nada posso fazer para te ajudar.
- Eu sei que não podes. É por isso que ainda me sinto mais vazia. O que me apetecia era pegar num carro e ir a um supermercado ou centro comercial fazer compras. Chegar a casa e comer porcaria em frente à televisão. Telefonar aos amigos e ir sair para dançar com música ensurdecedora e luzes psicadélicas. Ou ver um filme novo no cinema, cheio de aventura, luz, cor e sonhos. Algo que fazia há quinze anos e que nunca mais poderei fazer.
- Bem, a tua vida vista assim é uma angústia.
- E para ti não é?
- Não, quer dizer, até agora não tinha pensado nisso. Mas repara que a nossa pequena diferença de idade implica que eu já não tenha vivido essas experiências. Aos quinze anos já não havia centros comerciais ou supermercados aos quais se ia gastar dinheiro para passar o tempo. E as noitadas não tiveram a minha participação porque os meus pais temiam deixar-me sair.
“Logo aí comecei a viver o medo. E o medo que senti em Lisboa pintou este Monte de lindas cores. A segurança que aqui tenho compensa tudo o mais, tanto que não sinto falta de tudo isso que disseste, pois nunca cheguei, verdadeiramente, a tê-lo.
“Aliás, agradeço todo este trabalho que me é exigido pois insuportáveis foram as horas passadas no apartamento de Lisboa, enquanto a violência grassava nas ruas e o Jorge saía em busca de comida e água.
- Isso eu compreendo. Mas não me chega. É que tu ainda tens o Jorge para te encher a vida.
- E por vezes enche demais.
- Pois, mas eu nem isso tenho, pelo que estas brincadeiras com o Nuno são uma agradável pitada de sal.
- Vamos sair daqui? Estou a ficar engelhada como uma ameixa seca.

Sentado nos seixos Nuno via Patrícia e Susana conversarem, apenas duas cabeças à tona. Reviveu a sensação daquele corpo em fato de banho enrolado no seu e sentiu-se excitado. Envergonhado, assumiu uma posição que disfarçasse os seus calções enquanto o rubor aflorou a sua face.
Não tinha qualquer dúvida que Patrícia era uma mulher excêntrica. Porém intimidava-o. Não pela idade, cuja diferença era, para si, um estímulo suplementar, mas sim pela atitude ambígua, demasiado frontal para ser verdadeira. Como se o provocasse para ver até onde ia e depois, se Nuno se expusesse, estaria em condições para, apenas com um sorriso, invocar um humilhante mal-entendido.
Já Susana era, sem dúvida, mais meiga, e por isso menos assustadora. Pena não ser ela a provocadora, mas à semelhança de quase toda a gente naquele reduzido grupo no qual se inseria, também Susana tinha o seu companheiro e não estava disponível para alimentar as fantasias adolescentes. Nuno sentia a urgência de um corpo de mulher, mas à sua volta só a assustadora Patrícia estava ao seu alcance, mas simultaneamente tão longe.
Mesmo fisicamente Susana despertava em si uma luxúria incontrolável, e sempre que estava com ela tinha dificuldade em afastar o olhar do seu corpo, dos seus pormenores. Susana era muito mais baixa que ele, uns bons dois palmos, e raramente exibia o seu corpo por o achar gordo, antes o deixando entrever na roupa que envergava. Nos decotes postos à prova pelos seios grandes, nas rachas das saias compridas que anunciavam as coxas suaves, nas camisas curtas que exibiam um pouco da barriga... O cabelo negro, comprido, que lhe emoldurava as coradas faces, tinha um brilho matizado à luz do sol que ligava na perfeição com os olhos castanhos sempre brilhantes, húmidos que o olhavam de baixo, absorventes. E Nuno adorava vê-la rir, lançando a cabeça para trás e soltando uma gargalhada incontida, sonora, de extremo prazer.
Viu-as sair da água, dois corpos expostos, escorrendo, brilhando. A sua mente divagou para pensamentos menos nobres, muito, mas muito carnais. As duas mulheres sentaram-se a seu lado, Patrícia agarrando-lhe o braço direito, Susana o esquerdo, e encostaram-se frias da água sobre a sua pele já seca e aquecida pelo forte sol que se fazia sentir. Sentiu um misto de incómodo e gratificação e deixou um sorriso torcer-lhe os lábios.

Dois dias depois Susana e Patrícia repartiam a árdua tarefa de alimentar e limpar os animais logo pela manhã. Era mais um grandioso e solarengo dia de calor, que logo pelas oito e meia da manhã agitava as moscas e ameaçava torrar quem ousasse abandonar a sombra entre o meio-dia e as quatro da tarde.
Suada apenas por ter percorrido a curta distância entre a casa e o barracão dos animais, entrou Luisa.
- Bom-dia.
- Bom-dia! – responderam em uníssono as duas mulheres entre os esguichos da mangueira que lavava o chão e enchia os bebedouros.
- Posso falar com as duas?
- Claro. – responderam novamente em coro.
- Por favor, desliguem a água.
Um forte mugido vibrou o chão de cimento enquanto Patrícia rodava a torneira.
- Pareces séria. O que se passa? – perguntou.
- Não me levem a mal o que vos vou dizer. Mas vivemos uns com os outros, mais próximos que uma família que... Peço-vos que... – hesitou, – Peço-vos cuidado com o que fazem ao meu filho.
Patrícia e Susana entreolharam-se inquisitivas, sem perceberem o alcance das palavras da mãe de Nuno.
- Desculpa, - começou Susana, - mas não percebo onde queres chegar.
- Vi-vos no Domingo na água com ele. Compreendam uma coisa. Em tempos normais estaria preocupada com a forma como o Nuno iniciaria a sua vida emocional, sexual, com as suas namoradas, com doenças sexualmente transmissíveis e gravidezes indesejadas.
“Infelizmente estes não são tempos normais e os únicos... como dizê-lo, os únicos objectos sexuais que lhe permitem fantasiar são vocês as duas. A mulher mais nova e a mulher descomprometida desta nossa pequena sociedade.
“E a forma como vocês lidam com ele será crucial para o seu bem-estar. Para o bem-estar de todos nós. Jogos de sedução são perigosos para a sua mente quando acontecem num universo tão fechado como o nosso. São perigosos para a sua alma, a sua personalidade.
O olhar de Patrícia e Susana quedava-se fixo em Luisa, que de pé, defendendo o filho, parecia ter crescido e tornado num gigante a falar para duas crianças. O seu tom de voz carregava a emoção de um apelo suportada pela firmeza de uma convicção incondicional.
- Susana, tu és uma mulher comprometida. Tu, Patrícia, tens quase o dobro da idade do Nuno, tão próxima da minha idade. Vocês têm o poder de cuidar do meu filho ou de o arrasar.
Temperou o discurso com uma pausa. Susana ameaçou responder mas a veemência do olhar de Luisa silenciou a sua voz ainda antes desta se ouvir. Ainda não acabara.
- Fiquem apenas sabendo que tudo farei para proteger o meu filho. Mas que não pretendo castrá-lo, dominá-lo. Por isso apenas vos peço: tenham cuidado com o Nuno. Para bem de todos nós.
Com um sorriso forçado engoliu em seco, virou-se e regressou a casa. Atrás de si, duas mulheres surpreendidas retomaram a sua lide em silêncio. Só depois de interiorizarem o discurso ousariam voltar a falar.
(continua)

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