30.11.08

Desertos (XII)

(continuação)
11
BANHOS


- Já viram que estamos aqui juntos há cinco meses e pouco sabemos uns dos outros?
Nuno sorria com a água a escorrer-lhe do cabelo escuro enquanto mantinha os braços e as pernas em movimento para não se afundar.
- Fala por ti. Eu até estou bem informada. – na fresca albufeira dos Cardeais Patrícia nadava rodopiando à volta do rapaz.
- A sério. Vocês as duas são as pessoas mais próximas de mim em termos de idade.
- Achas? Então a Filipa e a Sandra não estão mais próximas da tua idade? – riu Susana, saltitando nas pontas dos pés para manter apenas a cabeça à tona.
Incomodado, Nuno foi rápido na resposta.
- Elas são miúdas. Pensam em brincar com bonecas e nem sequer entraram na adolescência, ao passo que eu...
- Em que pensas tu? – o desafio de Susana atingiu-o com a força do olhar fixo que aguardava a resposta. Nuno corou. Quis manter o olhar, mas não foi capaz. Desviou-o e engoliu em seco, procurando uma resposta falsa mas não óbvia que o salvasse do embaraço.
Patrícia arrematou, cruel:
- Em que pensam os rapazes aos dezassete anos? Em sexo, logicamente. – e, dito isto, aproximou-se por detrás, agarrou-o pelo pescoço, entrelaçou as suas pernas na cintura de Nuno e exclamou junto do seu ouvido, - Não é!?
O rapaz esquivou-se deixando-se afundar. Sentindo-se encurralado pela provocação com a qual não conseguia lidar, escudou-se nadando sob a água para emergir mais adiante. Deu umas braçadas até à margem e atirou-se para o chão de seixos rolados. Dentro de água as duas mulheres aproximaram-se e trocaram palavras baixas.
- Estás a meter-te com ele porquê?
- Porquê? Talvez por ser o único homem disponível na minha vida, e até ser giro.
Patrícia sempre fora comprida e magra, gozada por ser mais alta que os rapazes da sua idade e não ter curvas no corpo para os encantar. Era bonita, com lábios finos e maçãs do rosto salientes enfeitadas de suaves sardas, e cabelo loiro, que sempre usara curto, a chamar a atenção para os olhos verde escuros. O fato de banho que envergava era curto e largo, mas graças à sua elasticidade lá cumpria a missão, cobrindo a pele clara igualmente sardenta. O seu sorriso era permanente, e disfarçava as olheiras que nunca faltavam quando dormia menos de sete horas por noite.
Perante a sua resposta, o ar de espanto, muito próximo de ofendido, revelou-se na expressão de Susana.
- Como disponível? Ele tem dezassete anos!
- E eu tenho trinta. E então, nunca ouviste falar de relações com diferenças de idade?
- Não podes estar a falar sério.
- Não, não estou. – sorriu com um toque de maldade. – Quer dizer... se tivesse a oportunidade de ser a sua primeira mulher, percebes?, não me importaria nada. Mas só isso. No fundo sempre preferi homens mais velhos, e o Nuno é muito jovem. Mas é um rapaz muito atraente e com um potencial...
- Que alívio. Por momentos pensei que estavas a delirar.
- A delirar ou não, Susana, sinto a falta dos tempos dos flirts, quando andava na escola e a vida corria sem sobressaltos. Quando vivia com os pais e namorava à porta fechada no quarto, sempre arriscando ir mais longe apesar de a qualquer momento a minha mãe poder abrir a porta. Sinto falta das boleias e de nada me preocupar a não ser com as intrigas e os namoros. Quando tinha a idade do Nuno nem sabia o que era um monte alentejano. Mas já tinha ido para a cama com dois dos meus namorados. E eles também tinham dezassete, dezoito anos.
“Estou cansada de viver com medo, como acontecia em Lisboa antes de virmos para aqui. Mas também estou cansada de trabalhar como aqui tenho que o fazer. Dos porcos, das cabras, das terras e das sementes, dos caules e da rega, da loiça e da comida. Estou farta.
“Sinto-me cansada deste minúsculo universo de gente que tenho à minha volta, sem caras novas para conhecer ou para me surpreender. Cansada de seres a única pessoa com quem posso falar disto e o Nuno o único rapaz com quem posso brincar. Estou tensa, não me divirto, e já não vou para a cama com um homem vai para quatro anos.
Susana ouviu e tentou aligeirar a conversa e a disposição da amiga.
- Ora, aí tens. Tensão sexual acumulada. E saudades da vida metropolitana de adolescente. Não sei, Patrícia, mas esses são sintomas de uma condição para a qual nada posso fazer para te ajudar.
- Eu sei que não podes. É por isso que ainda me sinto mais vazia. O que me apetecia era pegar num carro e ir a um supermercado ou centro comercial fazer compras. Chegar a casa e comer porcaria em frente à televisão. Telefonar aos amigos e ir sair para dançar com música ensurdecedora e luzes psicadélicas. Ou ver um filme novo no cinema, cheio de aventura, luz, cor e sonhos. Algo que fazia há quinze anos e que nunca mais poderei fazer.
- Bem, a tua vida vista assim é uma angústia.
- E para ti não é?
- Não, quer dizer, até agora não tinha pensado nisso. Mas repara que a nossa pequena diferença de idade implica que eu já não tenha vivido essas experiências. Aos quinze anos já não havia centros comerciais ou supermercados aos quais se ia gastar dinheiro para passar o tempo. E as noitadas não tiveram a minha participação porque os meus pais temiam deixar-me sair.
“Logo aí comecei a viver o medo. E o medo que senti em Lisboa pintou este Monte de lindas cores. A segurança que aqui tenho compensa tudo o mais, tanto que não sinto falta de tudo isso que disseste, pois nunca cheguei, verdadeiramente, a tê-lo.
“Aliás, agradeço todo este trabalho que me é exigido pois insuportáveis foram as horas passadas no apartamento de Lisboa, enquanto a violência grassava nas ruas e o Jorge saía em busca de comida e água.
- Isso eu compreendo. Mas não me chega. É que tu ainda tens o Jorge para te encher a vida.
- E por vezes enche demais.
- Pois, mas eu nem isso tenho, pelo que estas brincadeiras com o Nuno são uma agradável pitada de sal.
- Vamos sair daqui? Estou a ficar engelhada como uma ameixa seca.

Sentado nos seixos Nuno via Patrícia e Susana conversarem, apenas duas cabeças à tona. Reviveu a sensação daquele corpo em fato de banho enrolado no seu e sentiu-se excitado. Envergonhado, assumiu uma posição que disfarçasse os seus calções enquanto o rubor aflorou a sua face.
Não tinha qualquer dúvida que Patrícia era uma mulher excêntrica. Porém intimidava-o. Não pela idade, cuja diferença era, para si, um estímulo suplementar, mas sim pela atitude ambígua, demasiado frontal para ser verdadeira. Como se o provocasse para ver até onde ia e depois, se Nuno se expusesse, estaria em condições para, apenas com um sorriso, invocar um humilhante mal-entendido.
Já Susana era, sem dúvida, mais meiga, e por isso menos assustadora. Pena não ser ela a provocadora, mas à semelhança de quase toda a gente naquele reduzido grupo no qual se inseria, também Susana tinha o seu companheiro e não estava disponível para alimentar as fantasias adolescentes. Nuno sentia a urgência de um corpo de mulher, mas à sua volta só a assustadora Patrícia estava ao seu alcance, mas simultaneamente tão longe.
Mesmo fisicamente Susana despertava em si uma luxúria incontrolável, e sempre que estava com ela tinha dificuldade em afastar o olhar do seu corpo, dos seus pormenores. Susana era muito mais baixa que ele, uns bons dois palmos, e raramente exibia o seu corpo por o achar gordo, antes o deixando entrever na roupa que envergava. Nos decotes postos à prova pelos seios grandes, nas rachas das saias compridas que anunciavam as coxas suaves, nas camisas curtas que exibiam um pouco da barriga... O cabelo negro, comprido, que lhe emoldurava as coradas faces, tinha um brilho matizado à luz do sol que ligava na perfeição com os olhos castanhos sempre brilhantes, húmidos que o olhavam de baixo, absorventes. E Nuno adorava vê-la rir, lançando a cabeça para trás e soltando uma gargalhada incontida, sonora, de extremo prazer.
Viu-as sair da água, dois corpos expostos, escorrendo, brilhando. A sua mente divagou para pensamentos menos nobres, muito, mas muito carnais. As duas mulheres sentaram-se a seu lado, Patrícia agarrando-lhe o braço direito, Susana o esquerdo, e encostaram-se frias da água sobre a sua pele já seca e aquecida pelo forte sol que se fazia sentir. Sentiu um misto de incómodo e gratificação e deixou um sorriso torcer-lhe os lábios.

Dois dias depois Susana e Patrícia repartiam a árdua tarefa de alimentar e limpar os animais logo pela manhã. Era mais um grandioso e solarengo dia de calor, que logo pelas oito e meia da manhã agitava as moscas e ameaçava torrar quem ousasse abandonar a sombra entre o meio-dia e as quatro da tarde.
Suada apenas por ter percorrido a curta distância entre a casa e o barracão dos animais, entrou Luisa.
- Bom-dia.
- Bom-dia! – responderam em uníssono as duas mulheres entre os esguichos da mangueira que lavava o chão e enchia os bebedouros.
- Posso falar com as duas?
- Claro. – responderam novamente em coro.
- Por favor, desliguem a água.
Um forte mugido vibrou o chão de cimento enquanto Patrícia rodava a torneira.
- Pareces séria. O que se passa? – perguntou.
- Não me levem a mal o que vos vou dizer. Mas vivemos uns com os outros, mais próximos que uma família que... Peço-vos que... – hesitou, – Peço-vos cuidado com o que fazem ao meu filho.
Patrícia e Susana entreolharam-se inquisitivas, sem perceberem o alcance das palavras da mãe de Nuno.
- Desculpa, - começou Susana, - mas não percebo onde queres chegar.
- Vi-vos no Domingo na água com ele. Compreendam uma coisa. Em tempos normais estaria preocupada com a forma como o Nuno iniciaria a sua vida emocional, sexual, com as suas namoradas, com doenças sexualmente transmissíveis e gravidezes indesejadas.
“Infelizmente estes não são tempos normais e os únicos... como dizê-lo, os únicos objectos sexuais que lhe permitem fantasiar são vocês as duas. A mulher mais nova e a mulher descomprometida desta nossa pequena sociedade.
“E a forma como vocês lidam com ele será crucial para o seu bem-estar. Para o bem-estar de todos nós. Jogos de sedução são perigosos para a sua mente quando acontecem num universo tão fechado como o nosso. São perigosos para a sua alma, a sua personalidade.
O olhar de Patrícia e Susana quedava-se fixo em Luisa, que de pé, defendendo o filho, parecia ter crescido e tornado num gigante a falar para duas crianças. O seu tom de voz carregava a emoção de um apelo suportada pela firmeza de uma convicção incondicional.
- Susana, tu és uma mulher comprometida. Tu, Patrícia, tens quase o dobro da idade do Nuno, tão próxima da minha idade. Vocês têm o poder de cuidar do meu filho ou de o arrasar.
Temperou o discurso com uma pausa. Susana ameaçou responder mas a veemência do olhar de Luisa silenciou a sua voz ainda antes desta se ouvir. Ainda não acabara.
- Fiquem apenas sabendo que tudo farei para proteger o meu filho. Mas que não pretendo castrá-lo, dominá-lo. Por isso apenas vos peço: tenham cuidado com o Nuno. Para bem de todos nós.
Com um sorriso forçado engoliu em seco, virou-se e regressou a casa. Atrás de si, duas mulheres surpreendidas retomaram a sua lide em silêncio. Só depois de interiorizarem o discurso ousariam voltar a falar.
(continua)

29.11.08

Desertos (XI)

(continuação)
10
PATOS-BRAVOS

Conduzia um Mercedes como sempre vira fazer a seu pai. Andava de obra em obra, reunia com clientes, engenheiros, arquitectos e fornecedores. À noite perdia horas com a revisão de orçamentos e alguns aspectos contabilísticos dos quais não abria mão. Os telemóveis que carregava, dois simultaneamente, estavam constantemente a tocar. Os dias tinham menos dez horas do que aquilo que precisava.
Desde que herdara o negócio do pai, depois do fatídico ataque cardíaco que o vitimou ao volante, Mário tornou-se um escravo do stress, um mouro de trabalho. Ainda assim, como empreiteiro, era reconhecido pela sua competência e tinha sempre mais procura pelos seus serviços que aquilo que conseguia oferecer.
Até que a economia estagnou e engrenou a marcha-atrás. As pessoas deixaram de comprar casa, de reparar prédios, de remodelar lojas. Mário despediu toda a gente que para si trabalhava, arrumou a tralha e engrossou a coluna dos desocupados em busca da subsistência do dia-a-dia. A ruína do nome comercial desperdiçou o trabalho acumulado de duas gerações. Mário tornara-se em apenas mais um indivíduo que, por acaso, até percebia de construções.

Logo no dia seguinte Mário, Luis e Pedro dedicaram-se à análise das soluções arquitecturais expansionistas. Nuno e Inês encarregaram-se da visita guiada aos demais recém-chegados e a vida do monte exigiu cuidados que tiveram de ser prestados.
- Então, o que achas da minha ideia? É viável?
- Sim, Luis, sim... O resultado é o adequado e não exige muito esforço. Ainda assim temos que pensar o processo muito bem e planear a forma de levarmos à prática essa construção.

A casa do Monte das Murtas nunca foi grande. Um quase quadrado de dez metros arrumava três pequenos quartos, uma cozinha, uma casa de banho e a sala comum. Cá fora, um alpendre fazia ângulo recto entre Sul e Poente, estendendo a sua protecção três metros para além das paredes exteriores, cobrindo um terço da fachada da frente e toda a do lado esquerdo onde se sentavam usualmente a contemplar o ocaso que ao final da tarde incendiava a planície.
A porta da entrada, abrigada pela extremidade do telheiro da frente, franqueava o acesso directo à sala comum. À sua direita duas janelas arejavam a sala e a cozinha.
A sala era um quadrado de seis metros de lado que tinha ainda duas janelas do lado esquerdo, abertas para ocidente. Segundo o plano de Luis, essas duas janelas seria sacrificadas convertendo-se em novas portas, abertas para o alpendre que daquele lado seria fechado e dividido em dois novos quartos, estreitos, mas garantindo que o aperto seria tolerável. Num deles enfiariam uma cama e um beliche e deitariam ali o Mário e a Rita com as duas filhas. O outro seria mobilado de forma idêntica, entregando-se a cama a Patrícia e pondo Nuno e Pedro a dividir o beliche.
Nos dois pequenos quartos ao fundo da sala, já antigos, e para os quais se entrava por suas portas separadas pela grande lareira, Vasco e Luisa manter-se-iam onde estavam, ao passo que o agora quarto de Nuno arrumaria Susana e Jorge. Luis e Inês continuariam a ocupar o quarto grande, no canto Nordeste da casa.
Contudo, até conseguirem concluir toda esta obra, teriam literalmente que acampar em todos os pequenos espaços disponíveis. Tinham pela frente muito trabalho, como o demonstrou Mário assim que fez as medições e começou a enumerar o material que necessitaria. Impossibilitados que estavam de telefonar a pedir cimento areia e tijolos tiveram que recuar no tempo e desenterrar as técnicas de construção em adobe, das quais Mário apenas tinha umas luzes. Porém, Pedro era visitante assíduo de Marrocos e adepto curioso da arquitectura segundo essa técnica de construção ancestral usada amiúde naquele país africano. Assim, dominava os princípios básicos da construção e o seu espírito engenhoso resolvia as dificuldades logo que estas eram pensadas ou detectadas. Aproveitava sempre para ir dizendo que não esperassem milagres. A construção não seria rápida, e passaria a exigir cuidados permanentes para manter a solidez das paredes
Passaram horas a planear onde iriam encontrar a pedra, a lama, a palha, a madeira, a telha. Uma casa abandonada, que não a antiga habitação de Ti’ Francisca e Ti’ Zé, a qual pretendiam evitar, iria fornecer parte desse material. Aparelhando o boi à carroça lá iriam respigar umas portas, camas, telhas e madeiras e tudo o mais que fora arrolado durante o planeamento e pudesse ser recuperado sem danos.
Lá fora a chuva caía, forte e consistente, esgotando-se naquele domingo para durante as semanas seguintes dar as tréguas necessárias a tamanho empreendimento.

A vida continuou numa azáfama comunitária que exigia não só trabalho, mas também organização de formiga.
Eram agora treze as pessoas que tinham de ser alimentadas. Proporcionalmente às necessidades, também a mão-de-obra aumentou. Depois de duas semanas de fervorosa construção lá arrumaram novas camas nas divisões húmidas que o calor dos dias cada vez maiores de Março ajudava a secar rapidamente.
Puderam então reorganizar as tarefas agrícolas e pecuárias, maximizando o aproveitamento daquilo que a natureza lhes proporcionava a troco de cuidada atenção.
E, sem se aperceberem, rapidamente chegaram a Agosto.
(continua)

28.11.08

Aqui, mas a pé

Desertos (X)

(continuação)
9
NOVAS DO CAMINHO

Nos primeiros dias de Março o tempo mudou e rapidamente o frio deu lugar às temperaturas amenas. Algumas chuvas irrigaram os campos e chamaram o calor que ao meio-dia lembrava o Verão. Atarefados andavam todos a cuidar das sementeiras que rebentavam em busca de sol.
No final de um desses dias, quando repousavam no exterior contemplando o pôr-do-sol por detrás do monte mais a Oeste, os dois rafeiros alentejanos ergueram-se simultaneamente de orelhas em pé, olhando estáticos o caminho de acesso, alerta. Marvão ladrou uma única vez, profundamente, como um trovão.
- O que foi, Marvão – perguntou Luis alertado pelo animal. – Vem lá alguém?
O latido foi repetido, também por apenas uma vez, desta feita por Beja. Os cinco levantaram-se e foram para junto dos cães. Focaram o olhar no caminho e aguardaram ver o que os dois animais sentiram muito antes. Passaram alguns minutos até Nuno ser o primeiro a reagir.
- Vejo gente. Um..., dois...
- Também já os vi. – respondeu o pai.
- Três homens, três mulheres e duas crianças. Vêm a pé, excepto uma das crianças que está num carrinho que é empurrado. – Nuno parecia, sem dúvida, aquele que melhor visão tinha.
- Vê-se que vêm carregados e cansados. Coitados, de onde virão? – questionou Luisa.
- Não vejo armas. – comentou Vasco. Quatro pares de olhos viram-se para si. Inês foi a primeira a reagir.
- Que merda é essa? Só pensas em armas?
- Alguém tem que o fazer. Vou buscar a caçadeira.
- Vasco, pára com isso. – interveio a sua mulher.
- O seguro morreu de velho. – resmungou em direcção a casa.
- Luis, não dizes nada?
- Talvez ele tenha razão, Inês. A questão aqui não será de onde esta gente vem, mas quem é e para onde vai. O caminho para este monte não é muito óbvio, e eles viraram para aqui. Se o Vasco consegue reagir e pensar assim..., acho que só temos que aproveitar. Vejamos se reconhecemos alguém. Quem poderia ter fugido da cidade para vir ter connosco aqui?

Tal como meses antes, aguardaram a aproximação dos visitantes, desta feita muito mais lenta porque apeados. Mais uma vez foi Inês a revelar-se a mais perspicaz e a reconhecer o primeiro dos viajantes.
- É o Pedro, Luis, é o Pedro. O primeiro do grupo é o Pedro...
- Pois é, o grande sacana.
Vasco alvitrou:
- Então, com duas crianças, será que vêm ali o Mário e a Rita?
- Tens razão, - confirmou Inês, - é o Mário quem empurra o carrinho.
Pouco a pouco reconheceram todos os elementos do grupo que se aproximava. Todos amigos, conhecidos dos tempos da cidade e da abundância. Das longas tardes na praia, na piscina ou à mesa. Das sardinhadas e passagens de ano. Dos casamentos, baptizados e funerais. Das férias e fins-de-semana, quando o mundo corria pacato ignorando as agruras guardadas no futuro.
Em direcção ao monte caminhavam Mário e Rita, com as suas filhas de dez e oito anos, Sandra e Filipa. Com eles vinham Jorge e Susana. O grupo era encabeçado por Pedro. E também lá vinha a Patrícia. Quando os treze se reuniram a meio caminho, a algazarra foi tremenda. Beijos. Abraços. Apertos de mão. Vivas. Olás. Perguntas sem resposta. Respostas não ouvidas. Sorrisos e risos.
Demorou muito tempo a sentar toda a gente à mesa, repescadas que foram todas as cadeira e bancos disponíveis. A noite caía rápida e era preciso esticar o jantar para quase o triplo dos convivas. Com ar sedento e esfomeado atacaram os vegetais salteados, os queijos e o pão. Beberam e falaram. Falaram e comeram. Comeram e beberam.

Pedro e Luis conheciam-se desde a infância, partilhando a mesma idade. Os seus pais não só foram vizinhos quase toda a vida, como eles partilharam durante 10 anos os bancos da escola, desde a infantil ao nono ano de escolaridade. Pedro sempre foi o melhor aluno da turma. Nunca se preocupou com actividades desportivas até à adolescência, altura em que desenvolveu o gosto por escalada, parapente, orientação e outras actividades com o mesmo espírito de aventura.
Tornou-se aluno do Técnico mas foi acabar o curso em Londres onde iniciou a sua carreira como engenheiro aeroespacial. Começando pela aeronáutica civil recrutado pela Aerobus, onde pouco tempo esteve pois a Lockheed lançou-lhe o desafio irrecusável de integrar a equipa de criação do novo Space Shutle americano. Trabalhava em Portugal, à distância, e fazia pagar caro a sua reconhecida criatividade e competência.
Quando a crise energética estalou o projecto espacial foi dos primeiros a ser enterrado. Pedro arregaçou as mangas e regressou à empresa que primeiro o acolheu. Mas por pouco tempo. A escassez de petróleo condenou a aviação tornando os custos de operação nada razoáveis. Desapareceu o investimento em novas máquinas e a indústria cerrou portas. Pedro ficou definitivamente desempregado e passou a viver da riqueza acumulada e para a qual nunca encontrara tempo para a gastar.

- Contem-nos então o que vos fez caminhar até ao Alentejo?
- Nunca esqueci a tua oferta, Luis... – começou Pedro, - Mas se não a aceitei antes foi apenas por causa do Zé.
- Que é feito dele? Porque não veio? – as perguntas saíram com naturalidade e só depois Luis se apercebeu que as respostas poderiam ser desagradáveis. Pelo canto do olho viu o olhar de reprovação da mulher, cujo arquear de sobrancelhas o alertava para a possibilidade de estar a entrar em terreno pantanoso. Tarde demais. Se fossem areias movediças já Luis estaria pelos joelhos. Acabou por ser Pedro a socorrê-lo, respondendo com naturalidade e revelando não ser o tema indesejado.
- Como sabes ele nunca largou o Parlamento Europeu. Mesmo com a crise e o descalabro dos Estados às mãos da populaça descontente, manteve-se firme acreditando que a União Europeia conseguiria fazer valer o seu peso, a sua dimensão, para alcançar resultados no esforço de recuperação do nosso estilo de vida passado.
“Porém acabou por ficar refém da sua escolha quando acabaram os voos comerciais. Ficou preso em Estrasburgo e nunca mais voltou a Portugal. Já não havia condições de segurança para viajar de carro. Nem ele podia vir cá nem eu ir lá. Foi com dor que deixámos de nos ver.
“Durante um tempo ainda falámos por telefone, mas até as telecomunicações acabaram, e assim ficámos com um mundo entre nós. Ainda combinámos que, quando o Parlamento Europeu fechasse as portas ele tudo faria para voltar.
- Então porque saíste de Lisboa?
- Olha, Inês, porque viver em Lisboa está cada vez mais insuportável e perigoso. E esperar pelo Zé parece cada vez mais uma tortura. E eu não tenho jeito para Penélope. Deixei em casa várias mensagens, mais ou menos cifradas dizendo-lhe para onde vinha. Se um dia, porventura, o Zé regressar pode ser que ainda o vejamos a subir aquele caminho com um sorriso nos lábios.
- Como está Lisboa? – perguntou Vasco.
Houve uma pausa. Pedro não ia responder, pelo que Mário tomou as rédeas do relato.
- Uma bomba-relógio. Uma panela de pressão sem válvula de segurança. Há gente a mais e condições de menos. A gente importante está encurralada na Baixa, rodeada de barreiras militares. Já se fala em evacuação pela Marinha, usando veleiros, para se deslocarem rio acima na direcção de um qualquer Álamo. O certo é que o resto da cidade está entregue às feras.
“Os gangs que associávamos aos grupos da Cova da Moura, da Margem Sul, ou outros arredores generalizaram-se e foram-se fundindo uns aos outros, aumentando os efectivos e o poder. E os critérios de agregação proporcionaram verdadeiros exércitos de intolerância.
- Como assim?
- Vê bem, Luis, em situações de excepção, como as que hoje se vivem, as pessoas tendem a agrupar-se de acordo com algo que tenham em comum. O que primeiro começa por ser a identidade familiar, ou o círculo de amigos, acaba por se ir alargando e concretizar-se em algo mais específico, mais objectivo. Então hoje em dia, em Lisboa, as zonas começam a ser controladas por gangs que se formaram de acordo com a nacionalidade, a etnia, a religião.
“Agora tens o bairro dos Guineenses, dos Russos, dos Alfacinhas, dos Chineses, dos Indianos, dos Nortenhos, dos Ciganos... sei lá. E foi porque em Lisboa o sentido de “bairro” há muito se perdeu nos velhos de Alfama, do Bairro Alto ou da Mouraria, por exemplo. Na Margem Sul o fenómeno é diferente e mais regional. Há o gang de Cacilhas, de Almada, do Seixal, do Barreiro... E cada grupo quer o seu espaço, o seu território, especialmente à medida que aumenta de número, pelo que volta e meia estalam autênticas guerras, sem que haja qualquer autoridade que as impeça. A polícia e o exército não intervêm pelo que quem não pertence a nenhum grupo arrisca-se a ser apanhado pelo meio e a ficar nas suas mãos.
- Como é que escaparam a isso?
Mário fizera uma pausa para encher o copo de água, pelo que Pedro retomou a narrativa.
- Foi no Verão passado que as coisas se agravaram, com o eclodir de confrontos, resquícios ainda de tensões acumuladas com a Grande Batalha, a última vitória governamental sobre a população.
- Quando nós fugimos de Lisboa. – ajudou Luisa.
- Assim que recuperaram, os gangs orquestraram um feroz ataque concertado que confinou as tropas à Baixa e ao Chiado. Em ambiente de verdadeira guerra civil dividiram o território conquistado. Com alguma dificuldade reunimo-nos os oito na casa da Patrícia, ali no Parque das Nações ao pé da Vasco da Gama, porque sabíamos ser o ponto mais próximo da saída da capital.
“Nessa altura já o acesso à comida e bebida estava a ser regulado pelas lideranças dos grupos formados, gente despótica, gananciosa, sem coerência ou justiça. Em Setembro decidimos que tínhamos de partir para aqui, lamentando que não o tivéssemos feito logo após a Grande Batalha, quando tudo estava mais desorganizado e era mais fácil abalar.
- Mas então como é que só agora aqui chegaram?
- Não fomos os únicos a ter a mesma ideia. E na véspera da partida vimos um pequeno grupo ser maltratado no acesso à Vasco da Gama. Sabendo que havia gente a querer fugir uns grupos de sacanóides atacaram essas pessoas, roubaram-nas, mataram-nas, fizeram tudo o que quiseram. Perante o susto que apanhámos ao ver aquilo, planeamos a fuga junto à margem do rio até Vila Franca para aí passar na ponte. Mas aquela ponte foi derrubada e só de barco se consegue atravessar o rio. Logo, os barcos estão na mão de uns “empresários” originais nos quais não confiámos, pelo que não nos metemos com eles, especialmente por causa das miúdas.
“Com as chuvas o Tejo ia largo e Vila Franca de Xira estava parecida com uma cidade de cowboys, pelo que arriscámos seguir até Santarém. Aí já não há luz e a cidade parece uma vila medieval, encerrada junto às muralhas do castelo. Muito pobre, mas relativamente segura. Não havia violência e acabámos por ficar por lá pois entretanto chegara o frio e temíamos não aguentar a viagem até aqui. Só arrancámos há três semanas, quando já podíamos dormir ao relento.
- Desculpa lá, Luis, - começou Rita, - virmos encher o teu refúgio. Isto connosco fica sobrelotado.
- Não te preocupes. Já não conhecemos mais ninguém que venha para cá, a não ser o Zé, se um dia cá chegar. Agora nos primeiros dias arrumamo-nos por aí, depois pensamos em acrescentar a casa.
- Como dizes?
- Sim, Inês. tenho umas ideias e aqui o engenheiro espacial e o empreiteiro são as pessoas adequadas para as desenvolver. Vamos crescer com mais dois ou três quartos. Vão ver.
(continua)

27.11.08

Desertos (IX)

(continua)
8
AO ABANDONO

- O caminho é plano. Em pouco mais de meia hora estaremos lá.
- Quantos quilómetros? – perguntou Nuno.
- Vinte e dois.
- O frio não ajuda.
- Tens razão. Pedalar todo coberto por roupa não é fácil. Ontem, como a distância era muito curta, nem me apercebi.
- É melhor não falar muito. Poupa-se o ar frio nos pulmões.
Pouco passava das nove e meia da manhã quando partiram. O sol envergonhava-se atrás de nuvens altas demorando a aquecer o ar gelado da noite alentejana. Aqui e ali círculos de geada pintavam de branco terra e plantas. Com uma pedalada firme e constante, aproveitando a máxima desmultiplicação disponível entre pedaleiras e carretos, rolavam rapidamente em direcção à cidade.
Aproximaram-se por Poente, passando pelo ramal de acesso à auto-estrada há muito saudosa das altas velocidades. Avançando com o castelo pela direita, empoleirado com a antiga pousada que em tempos muita gente trouxe ao descanso da planície, entraram no núcleo urbano sem ver vivalma.
- Mesmo para um dia de Inverno, isto está demasiado vazio. – desconfiou Nuno.
- Infelizmente é normal. Da última vez que cá vim já pouca gente por cá vivia. Todos os mais novos caíram na ilusão da cidade e fugiram para Setúbal, Almada, Lisboa, quando o Governo anunciou que apenas os grandes centros continuariam a ter electricidade.
“Ficaram os mais velhos. Porém, ao contrário dos que sempre viveram nos montes, com muito trabalho e poucas comodidades, e que continuaram a sua vida sem grande sobressalto, os velhos da cidade já nada sabiam da dureza da vida e os dois primeiros Invernos sem aquecimento e Verões sem ar-condicionado fizeram muitas, mas mesmo muitas vítimas. Aos poucos foram morrendo, desistindo da vida, fugindo aos maus dias que se avizinhavam para assim guardar os bons tempos do passado. Hoje pouca gente vive aqui.
Avançaram para o Rossio. Por todo o lado se viam sinais de abandono. Nas casas, nas ruas, nos canteiros, no lixo que se acumulava onde antigamente o Presidente da Câmara mandava pôr flores. O lago tinha apenas restos putrefactos de chuvas antigas. Junto aos passeios carros abandonados entregavam-se à ferrugem, com os pneus flácidos, vazios, ressequidos, esquecidos do tempo em que havia combustível para os alimentar.
Junto do “Águias d’Ouro”, café-restaurante cuja fama vinha do século passado, cinco velhos expeliam baforadas de vapor no ar frio da manhã. O sol que os iluminava não os conseguia aquecer, tarefa essa entregue às pesadas samarras de pele de ovelha cosidas com a sabedoria dos tempos, e aos gorros de lã com abas para tapar as orelhas. Assim que viram as bicicletas pararam a conversa e focaram atenções nos recém-chegados. Foi notória a colocação dos três cajados e duas bengalas que seguravam em posição de defesa. Imóveis, desconfiados, aguardaram a aproximação.
Já perto deles um dos velhotes reconheceu Luis e, aliviando a tensão, exclamou:
- É o neto da Jacinta do Zé Coirato. Vem lá com um catraio.
À boa maneira alentejana o avô de Luis ganhou a sua alcunha aos 11 anos quando se sentiu enjoado com uma sandes de coirato, vomitando o pitéu então raro para a boca de um pobre.
As bicicletas pararam e Luis, desmontando, cumprimentou o grupo. Palavras de circunstância afastaram-se lestas dando lugar à recolha de informações.
- Isto está cada vez mais vazio.
- Pois é. Somos cada vez menos para jogar à sueca.
- E temos cada vez mais frio no Inverno e calor no Verão. – concluiu um segundo.
- Então, Luis, o que é que te traz à cidade?
- Tenho que ir falar com o Sargento Calado, da GNR.
- Então estás mal, que o homem já abalou.
- Para onde? Quando volta?
- Não te sei dizer... mas apostava que não voltarão?
- Não?
- Ele e o rapaz, o Coito, o soldado...
- Sim...
- Arrumaram a trouxa e partiram ainda antes do Natal. Ao que parece lá na Lisboa precisam de todos os guardas disponíveis pelo que os mandaram partir. Assim como assim, aqui já nada faziam. Já não há nada para guardar.
- Como assim? Então e vocês?, não precisam da ajuda da GNR?
- Para quê? Se nos chatearmos entre nós, entre nós resolvemos o caso tal como os nossos avós o faziam. E de fora não vem ninguém.
Luis engoliu o comentário que lhe veio à boca e sentiu o ardor da azia. Não valia a pena incomodá-los com a história de Ti’ Francisca e Ti’ Zé. Ainda assim não resistiu a provocá-los.
- Mas quando estávamos chegando vocês puseram logo as varas a jeito.
- Sim, Luis... agora somos mais desconfiados... mas é só porque estamos sozinhos e velhos, e a coisa ruim aparece quando menos se espera.
- Bom, se agora já não têm a guarda tenham mesmo cuidado. Nunca se sabe quando pode aparecer por aí alguém com estranhas intenções.
A conversa estendeu-se por mais uns minutos tendo Luis procurado por mais novidades sem qualquer sucesso. Despediram-se então regressando à pedalada.
- Então e agora?
- Ao posto da GNR.
- Mas eles foram-se embora...
- E se deixaram alguma coisa deverá aproveitar aos que por cá ficaram. Vamos ver se conseguimos encontrar alguma coisa.

Entraram no posto por uma janela que Luis quebrou. Lá dentro, tirando o pó, e a luz difusa que se intrometia por entre os tabuados que entaipavam as janelas, não parecia um posto abandonado, mas tão-só fechado para almoço. Mesmo longe da hierarquia, abandonando a terra onde viveram tantos anos em direcção a uma cidade onde a violência os esperava, os dois militares retiraram em ordem, sem confusão. Tudo estava como que esperando o seu regresso, como se amanhã aquela porta se abrisse e por ela entrassem o sargento Calado e o soldado Coito, bem barbeados e nos seus uniformes cinzentos voltassem a gerir o posto.
Luis e Nuno circularam pela casa de dois andares, espreitando ofícios que repousava, em armários e secretárias, abrindo as portas que surgiam no caminho e enfiando o nariz em todo o lado. Nada viam que lhes pudesse ser útil. Até que encontraram, num recanto junto ao gabinete do oficial de serviço, uma porta metálica trancada.
- É seguramente o armeiro, que tem estrutura de cofre. Para o deixarem trancado é possível que tenha alguma coisa lá dentro.
- Mas não seremos capazes de lá entrar.
- Tens que pensar como um GNR.
- Como assim?
- Até podem ter levado uma chave para entregar ao seu chefe. Mas não sabiam se alguém iria voltar, ou quem, ou quando. Por isso aposto que algures neste edifício se esconde uma chave para abrir esta porta. E talvez mesmo todas as portas do posto.
- Então será nas cavalariças. É o ponto de chegada para quem viaja a cavalo e terá sido o ponto de partida dos dois militares. Além do mais está fora do edifício, ou seja, é menos apetecível, logo menos provável de suscitar o interesse de um desconhecido.
- Ora aí está. Esse é um pensamento de GNR. Mas, - continuou Luis enquanto saíam para as traseiras em direcção ao barracão dos cavalos, - as cavalariças são todas em madeira, por isso...
- Por isso há o risco de serem derrubadas para lenha.
- Bravo. Vejo que entraste rapidamente neste espírito. Só espero que toda esta sabedoria não se torne chocha. Então, o que é que está cá fora que não seja em madeira.... Talvez os bebedouros, todos em tijolo.
- Ou o tanque da roupa, ali ao canto, e que é o objecto que menos curiosidade ou interesse suscita. Ninguém quer saber dele apesar de haver um em todo o lado.
- Também não está mal. Eu vejo os bebedouros, tu o tanque. Boa sorte.
Quer uns quer outro estavam já rodeados de ervas e musgo. O tanque, em desuso havia mais tempo, confundia-se com o meio envolvente, qual camaleão imóvel. Nuno foi lesto e na parte interior de uma das angulosas pernas descobriu pendurado um porta-chaves no qual, entre outras, estava a desejada entrada no armeiro.
Nuno começava a revelar-se, a definir a sua personalidade, a vencer a adolescência em passo acelerado em direcção à condição de adulto. Apesar de protegido pelos pais, e pelo casal amigo que desde pequeno o conheciam, Nuno descobrira o à-vontade suficiente para assumir frontalmente as suas ideias e convicções. Com isso começava a ser visto, especialmente por Luis, mais como um outro elemento válido do que o filhote pequeno que temos por perto de quem devemos cuidar e proteger .
A vida dura que Nuno experimentava começava também a mostrar-se no seu corpo. O trabalho deu-lhe músculos como se se dedicasse todos os dias a sessões de ginásio para desenvolver o físico. A voz engrossou, a barba começou a espessar no rosto quadrado, e notoriamente cresceu até ultrapassar a altura do seu pai. O cabelo liso, que fazia por manter curto, tinha exactamente o mesmo castanho dos olhos, mas manifestava a vontade de se tornar branco ainda antes dos trinta.
Por entre exclamações de satisfação perante o achado de Nuno, voltaram à porta metálica que com quatro voltas da comprida chave se escancarou perante o olhar de ambos. O cheiro a óleo e pólvora subiu aos seus narizes. Nas três paredes suportes de armas vazios revelavam que toda a ferramenta letal tinha acompanhado os militares à medida que foram abandonando o posto. Por baixo, estreitos armários entreabertos revelavam algumas caixas com centenas de munições que tinham ficado para trás.
Luis pegou numa das caixas e constatou:
- Devem ter todas mais de vinte anos. Deixaram para trás o peso morto das munições mais velhas e que podem não estar em condições.
- Servem para alguma coisa?
- Para nós servem. O mais que pode acontecer é premir o gatilho e nada acontecer. Mas vamos levar o que nos interessa.
- Levamos as balas todas?
- Não, não. As caixas que dizem 7,65 mm não servem para nada. As de 9mm... – olhou cuidadosamente para concluir, - também não servem para as Glock. Só levamos estas caixas mais compridas que são os cartuchos para a G3. Olha para isto, - disse pegando numa delas – estas foram fabricadas há mais de quarenta anos.
- Então... – concluiu Nuno contabilizando – apenas oito caixas de 200 munições.
- Mas bem pesadas... Isto vai tornar a viagem de bicicleta menos agradável. Vamos encher as mochilas e procurar um saco ou dois para o resto.
Pouco depois, após terem coberto o vidro partido com um tampo de uma cadeira que entalaram com mestria, trancaram o posto e esconderam as chaves de volta na perna do tanque da roupa. Montaram as bicicletas e iniciaram a pedalada de regresso. Nuno perguntou:
- Então e os vizinhos mortos?
- Voltaremos para os enterrar. Nada mais podemos fazer.
(continua)

26.11.08

Desertos (VIII)

(continuação)
7
AO SABOR DO TEMPO

Com o correr do Verão foram notórios os aumentos de produtividade nos terrenos cultivados. Prepararam o Inverno com cuidado, às mãos dos novos agricultores nascidos da necessidade dos tempos. Às colheitas sucederam-se as preparações dos terrenos, as conservas, as silagens. O sol foi morrendo cada vez mais cedo. O frio apareceu de repente, sem sequer dar lugar ao ambíguo Outono que logo deixou chegar um Inverno de rigor.
As noites esfriaram. O bafo quente deixou-se ficar a fumegar durante o dia. As mãos ficaram tementes da água, cada vez mais gelada. Tomar duche passou a ser visto como um comportamento radical, perante o risco de falha energética que condenasse o banhista a trato de polé. A lenha colhida e cortada no Verão encontrou o seu destino nas chamas da lareira.
Sucederam-se aniversários, o Natal e o Ano Novo, e todos festejaram com animação, cientes que a sua vida, não obstante trabalhosa, sorria sã e prometedora.

Já em Janeiro Luis decidiu ir ver dos vizinhos. Desafiou Nuno a acompanhá-lo e, de bicicleta, os dois atacaram os menos de dez quilómetros de caminho de terra. Vestiam agasalhos que no rapaz se abandonavam de largos que estavam. O certo é que a precipitada partida de Lisboa não permitira trazer muita coisa, ficando por isso dependentes da reserva de roupa de Luis.
Enquanto pedalavam suavemente, sem pressas, o barulho das rodas no areão só era entrecortado pelo arfar que projectava densas nuvens de vapor. As orelhas e o nariz gelavam no ar frio que cruzavam.
Rapidamente chegaram a um portão de madeira, escancarado. Erva crescia no caminho, como evidência que havia muito que ninguém passava por ali. Da casa só vinha silêncio. Desconhecendo que os vizinhos velhotes tivessem sequer possibilidade de se ausentarem daquele monte pelos seus próprios meios, Luis estranhou e logo ali gritou.
- Ti’ Francisca! Eh, Ti’ Francisca!. Está alguém?
Apenas o silêncio e o eco lhe responderam.
- Oh, Ti’ Zé, está em casa? – não se viam ou ouviam as galinhas que costumavam cirandar no pátio. Não havia fumo a elevar-se da chaminé, apesar do frio que se sentia. O Sado, o cão arraçado de perdigueiro, não se manifestou.
Temendo o pior ordenou a Nuno:
- Fica aqui junto das bicicletas. Se vires alguém grita-me logo.
Nuno acenou com a cabeça dando o seu acordo. Luis avançou para a casa.
Ao abrir a porta sentiu o ar frio e malcheiroso que do interior assaltou o seu nariz, de imediato se preparando para encontrar os cadáveres dos vizinhos. Porém, algo mais se revelou que o alertou. A casa estava revirada do avesso. Mobiliário, cacos, papéis espalhavam-se pelo chão. Estacou apurando o ouvido e nada. Nem um suspiro, um estalido, nada.
Entrou calcando vidros. A luz que entrava pelas janelas, algumas sem sequer terem vidraças, iluminava com clareza o pequeno espaço. Viu uma mancha escura na parede caiada, desmaiando em sentido descendente. No chão enrolava-se o corpo de Ti’ Zé. Inerte. Decomposto.
A náusea tomou conta de si. O chão ameaçou fugir aos seus pés e teve que se agarrar à ombreira da porta. Com essa ajuda manteve as pernas firmes e o pequeno-almoço no estômago. Quando conseguiu olhar de novo o cadáver, interiorizou o avançado grau de decomposição do mesmo. A morte não era recente, mas era evidente que não fora natural. O crânio estava desfeito à pancada, esmagado e deformado, e fora a origem da mancha na parede. As mãos do velho vizinho estavam amarradas atrás das costas com fio eléctrico.
Procurou por Ti’ Francisca no quarto, onde encontrou o seu invólucro terreno estendido na cama, amarrado de pés e mãos aos quatro varões da cama de ferro. Ao vê-la Luis soçobrou, assentando os joelhos no chão. A cabeça estava desfeita tendo alimentado uma escura mancha de sangue agora seco que preenchia a cabeceira. Marcas evidentes nos lençóis denunciavam o tiro de caçadeira a curta distância, brilhando a bucha do cartucho onde outrora estivera um nariz.
Mas a piorar todo o cenário estava a nudez do cadáver, expondo os horrores que aquela mulher de 78 anos vivera antes de morrer, manietada, violada, torturada.
Uma lágrima escorreu pela face de Luis, abalada pelo soluço que sufocou. Ganhou coragem para se erguer e regressar junto de Nuno, desorientado, inseguro quanto ao que fazer.
- Estão mortos, não estão?
- Pior. Foram mortos.
- Como?
- Com extrema violência e crueldade.
- Pela sua cor vejo que o panorama não é bonito.
- Nada. – Luis sentou-se no chão. Do alto Nuno perguntou:
- Então e agora? Há perigo? Procuramos a polícia?
- Perigo não haverá, que tudo aquilo já aconteceu há muito tempo. Quanto à polícia, também não sei o que poderá a polícia fazer.
- Mas devemos dar-lhe essa hipótese, não?
- Acho que tens razão. Temos que ir a Estremoz avisar a GNR. Até lá é melhor não mexer em nada.
- Este mês ainda não apareceu o guarda, como de costume.
- É normal. Em Janeiro, depois das festas, vem sempre um pouquito mais tarde. Mas não podemos esperar por ele. Temos que lá ir.
- Então vamos. – apressou Nuno – Não me sinto bem neste silêncio de morte.
Foi em silêncio fizeram o percurso para casa.

- Mas se lhes fizeram isso... o que nos garante que não passam por aqui e nos fazem o mesmo?
- Nada nos garante, Inês. Temos apenas que interiorizar que isso é uma hipótese e estar atentos, preparados para ela.
Logo que chegaram a casa Nuno e Luis reuniram-se com os demais na sala e relataram aquilo que tinham encontrado. O choque foi rapidamente superado pelo temor.
- Já vi junto à porta a caçadeira que tens aqui. – disse Vasco – É melhor tê-la mesmo à mão.
- Uma arma de fogo é um risco acrescido. Para ser útil tens que estar preparado para a disparar contra alguém. Estás preparado, Vasco?
- Se isso for para impedir que o mal chegue a cada um de nós... sem dúvida que estou.
- Estás preparado para matar alguém? – insistiu Luis.
- Sem dúvida. Desejo é nunca ter de chegar ao ponto em que tenha de tomar tal decisão.
- Desde que aqui cheguei que esqueci a insegurança. E agora, de repente, sinto-me tão vulnerável, tão assustada. – Luisa agarrou o braço do filho, puxando-o para si.
- Calma, mãe. Tenho a certeza que aqui estamos mais seguros que em Lisboa. Mas concordo que não podemos deixar de ter cautelas. Também eu quero aprender a disparar. Nunca se sabe.
- Não!, Nuno, tu não te vais pôr a mexer em armas!
- Porquê, mãe? – o ar típico de adolescente contrariado vinha desta feita carregado de convicção.
- Porque... porque és muito novo. E eu não quero que fiques em perigo.
- Desculpa, mas acho que sou um elemento suficientemente válido para que possam contar comigo. Para tudo, incluindo isto. E quanto ao perigo... o barco é o mesmo. Com ou sem armas.
Fez-se silêncio. Luisa olhou para Vasco em busca de apoio. Este ergueu as sobrancelhas, meneando ligeiramente a cabeça, assumindo que concordava com o filho. A mulher concluiu, rendendo-se sem mais contestar.
- Se calhar tens razão.
No novo silêncio que se seguiu foram Luis e Inês quem prolongadamente se olharam. Sem uma palavra discutiram argumentos, adivinhando o que o outro dizia, partilhando a cumplicidade de se conhecerem como a si próprios. Inês falou:
- Acho que deves contar-lhes.
Três pares de olhos focaram Luis, inquisitivos. Este teve que começar.
- Esta conversa leva-nos a um episódio que tenho de vos contar. Oiçam-me por um pouco.
“Quando começaram as expropriações para a barragem dos Cardeais, o meu avô chamou-me à parte e levou-me para um passeio. Com uma enxada ao ombro foi-me contando pelo caminho, na sua voz ciciada, uma história.
“Sabes, neto – começou ele – quando as águas começarem a subir vão cobrir uma zona que, depois, ficará inacessível. O pior é que enterrei ali uma coisa que não pode por lá ficar.
“O Avô tem um tesouro? – perguntei.
“Digamos que me confiaram um. Por isso, hoje vais desenterrá-lo e voltar a metê-lo debaixo da terra cá mais para cima no monte.
“E o que é?
“Já vais ver – respondeu-me evasivo.
“Chegados a um sobreiro com dois ramos que formavam um perfeito “V”, o meu avô entregou-me a enxada, contou dez passos e indicou o local.
“Cava aqui, pelo menos um metro.- ordenou. E eu assim fiz. A terra dura foi violada e afastada. Da ferida nasceu um oleado.
Neste ponto Luis fez uma pausa na narrativa. Sorriu com a figura de estilo que usara e usou a paragem para encher um copo com água. Vasco insistiu, suspenso que estava.
- Conta lá o resto da história, pá! O que é que estava enterrado? Onde queres chegar?
- “Cuidado, não estragues o recheio. Tira-o com cuidado.- foram as palavras do meu avô. E eu fui puxando o embrulho, com todo o cuidado, temendo partir o que quer que fosse. Porém, o tacto e o cheiro desvendaram-me o segredo ainda antes do meu avô concluir.
“No chamado Verão Quente, de 1975, o país estava tenso e temíamos que pudesse estalar uma guerra civil. Os militares afectos ao Partido agarraram uma data de armas e entregaram-nas. Já sabíamos que o PS andava a distribuir G-3, pelo que o PC tinha que fazer o mesmo. Era a lei da sobrevivência, do equilíbrio de forças. A mim confiaram-me essas duas. Aí estão duas G-3 e uma data de cartuchos.
“- Não sabia que tinha sido tão activo no Partido. Pensava que só lá ia para beber um copo e jogar às cartas.
“Naquela altura tinha sangue na guelra. Julgava que íamos mudar o mundo. O que não podia era tolerar um golpe da Direita e o retorno à servidão do latifúndio. Aceitei essas armas e comprometi-me a usá-las ou cedê-las a quem as usasse em caso de guerra civil. Felizmente, poupámo-nos ao massacre.
“Essas G-3 devem estar muito mazinhas.
“Que nada. Quando as coisas acalmaram e a vida prosseguiu desmontei-as e guardei-as bem oleadas, envoltas em panos oleados e em plásticos estanques. Ficas a saber que, se um dia precisares delas, onde as vir buscar. Com os anos de Marinha que tens deves ser a única pessoa da família que ainda sabe como mexer num canhão destes.
“E assim, - concluiu Luis, - enterrámo-las noutro local e ali ficaram até há pouco tempo. Pouco antes de vocês chegarem tínhamos decidido desenterrá-las. Limpei-as, montei-as, testei-as e posso dizer que tenho duas G-3 debaixo da cama. Os cartuchos é que não são muitos, e alguns já não disparam. Mas fiquem sabendo que temos estas armas.
- Duas G-3? – questionou Vasco sem procurar resposta.
- E duas Glock, que trouxe dos Balcãs quando por lá andei. Naquela altura comprei-as por menos de trinta contos.
- Duas Glock? De 9 milímetros?
- Sim, iguais àquelas que depois andaram a distribuir pelos polícias.
- Doido! – exclamou Luísa. – Pensas que vamos brincar às guerras?
- Não. Estou só a informar-vos. Aliás, as G-3 estão numa caixa fechada, e é lá que pretendo que continuem. Temos a caçadeira para nos defendermos no dia-a-dia do campo, seja de gente ou de animais perigosos. Tanto dá para matar como apenas para fazer barulho e meter medo. Já é uma arma bastante perigosa e espero nunca a ter que apontar a alguém. Mas obviamente que também serve para isso. É a arma para a qual existem mais munições. Tenho em armazém uns milhares de cartuchos, já embuchados e outros ainda por embuchar.
“Agora compreende que o que vi hoje me preocupou bastante. Quando comprei as Glock fi-lo num misto de brincadeira, de oportunidade, mas também sabendo que um dia poderia vir a socorrer-me delas. Pratiquei um crime ao trazê-las para Portugal e ao guardá-las religiosamente ao longo destes anos. Quando viemos para o monte era bom sabê-las à disposição caso fosse vítima do isolamento. Mas as únicas vezes que peguei nelas foi para as limpar e disparar dois ou três tiros com cada uma para assegurar a sua funcionalidade. Mesmo a caçadeira só a usei para caçar de vez em quando.
“Por isso não digas que quero brincar às guerras. O que vi hoje foi muito perturbador. Por isso vou pôr as duas pistolas à vossa disposição e ensinar toda a gente a usá-las com segurança e rigor. Não quero nenhum exército. Quero a segurança de todos nós.
- Concordo contigo. – apoiou Vasco.
- Amanhã vou a Estremoz, à Guarda. Mas vou levar comigo uma das pistolas. Porque vi naquele monte uma violência, uma brutalidade que julgava arredada destas bandas. Quem fez aquilo foi um grupo de selvagens.
- Deixe-me ir consigo. – voluntariou-se Nuno.
- Por, mim... – anuiu Luis.
Um olhar trocado entre os pais autorizou o filho. Os sorrisos trocados nos últimos meses esconderam-se, estranhamente arredados.
(continua)

25.11.08

Desertos (VII)

(continuação)
6
DORES NAS COSTAS

Estava de licença quando tudo aconteceu. Deitou-se no sofá a ver um jogo de futebol e ali ficou, em calmo estupor apreciando as fintas e os remates de conceituados e inspirados artistas da bola. Quando o árbitro apitou três vezes e os jogadores trocaram cumprimentos e camisolas a caminho do balneário, Luis experimentou o primeiro sinal de alerta. Ao regressar à posição de sentado uma dor aguda cravou-se-lhe nas costas.
Algo alarmado respirou fundo e tentou levantar-se. A dor decuplicou, explodiu no cérebro e percorreu o corpo até às pernas. Estas fraquejaram, cederam e deixaram-no cair desamparado no sofá. Gritou assim que recuperou a respiração arfante. Descontrolado tentou racionalizar o que consigo se passava.
Lentamente tentou mover as pernas para de novo se erguer. Ao dobrar os joelhos para fora do sofá onde jazia estendido uma nova facada se fez sentir na zona lombar. Desta vez o grito arrastou lágrimas a que se seguiu a imobilidade própria de quem está atemorizado perante um cenário de dor.
Com a lentidão de quem manobra numa apertada loja de cristais começou a analisar as queixas do seu corpo. Rapidamente percebeu que qualquer movimento das pernas tinha como consequência uma insuportável tortura. Já raiando o pânico procurou o telemóvel para pedir socorro. Virou a cabeça e com o olhar o buscou junto do comando da televisão, onde usualmente o pousava, para aí encontrar o vazio. Quis recordar onde deixara o aparelho mas a dor turvou-lhe o raciocínio. Urrou. Praguejou. Arfou.
Por momentos, breves momentos, correram pela sua mente ideias de paralisia, cadeiras de rodas, camas de hospital, dependência de terceiros. Em desespero lembrou-se de ter atendido uma chamada na cozinha antes do jogo, enquanto abria uma cerveja, e pousado o telemóvel na bancada. Tinha que lá chegar.
Buscou concentração, interiorizando o esforço que lhe era exigido. Concebeu mentalmente o trajecto. Testou os movimentos. Então, com muito cuidado, rebolou para o chão. A deslocação fê-lo explodir de raiva, gritando a dor aguda. Quedou-se procurando normalizar a respiração.
Lentamente, usando apenas a força dos braços, arrastou-se até à cozinha. Percebeu que evitando alguns movimentos poupava-se à dor. E assim, rastejando, telefonou a Inês, deixando-se ficar no chão da cozinha, de peito para o ar, enquanto aguardava por socorro. Quis chorar a impotência que o afogava, mas as lágrimas recusaram partilhar o momento e guardaram-se para outras ocasiões.

No hospital confirmaram o diagnóstico que se adivinhava. Tinha feito uma hérnia discal. Nada recomendava a cirurgia pelo que tinha que se habituar à ideia de viver com ela. Entretanto encharcá-lo-iam de analgésicos e relaxantes musculares e recomendavam vivamente que começasse uma dieta para tirar algum peso da coluna.
Logo que pôde foi consultar o seu médico e amigo de longa data. Este riu-se, confirmando o rigor do diagnóstico e dos conselhos e repetiu:
- Olha, Luis, eu tenho 2 hérnias discais, uma com vinte anos e outra com quatro. E vivo com elas. Tens que ter mais cuidado, em especial com os esforços brutos, fazer exercício adequado, especialmente natação, ter cuidado com a postura e emagrecer uns quilos, tudo para aliviar o teu esqueleto sobrecarregado.

Quando terminou a baixa não voltou a embarcar. A Armada começava a enfrentar a necessidade de reduzir custos e navegava o menos possível para não desperdiçar o cada vez mais caro combustível. Mantiveram-no no Alfeite por um ano, ocupado a nada fazer, até que o passaram à reserva. O sonho de muitos foi por Luis realizado sem que sequer pensasse nisso: ia para casa, sem trabalhar, e receberia o seu ordenado todos os fins de mês.
Nesse ano, entre uma nova dieta e o ginásio, perdeu vinte quilos. Escondeu na memória a lembrança do susto e do sofrimento passado.
Passados nove anos ainda sentia as queixas da sua maleita. Porém, com os cuidados que seguia, ainda conseguia aguentar com o esforço de ser agricultor. Tudo isto lhe passou pela cabeça enquanto, sozinho, arrastava os cadeirões para uma nova posição, mais adequada. Seria tão mais fácil pedir ajuda e fazê-lo a dois, mas a teimosia era uma das suas características. Teimosia e orgulho da sua autonomia, independência, de conseguir fazer sozinho o seu trabalho.
Apesar de ter estado anos na Marinha, inserido numa hierarquia, Luis não se considerava um jogador de equipa. Normalmente preferia trabalhar sozinho, fixar os seus objectivos e atingi-los por si, não estar dependente de outros para apregoar o seu sucesso, nem ter em quem culpar pelos seus fracassos.
Naquele monte funcionava a única equipa na qual alguma vez estivera bem inserido: a família a dois que constituíra com Inês. Mas isso apenas acontecia porque ela era, tal como ele, uma pessoa que gostava de estar no controlo da acção, no domínio do resultado. As suas carreiras revelaram isso mesmo, pois ambos assumiram papéis de chefia, ainda que em planos muito diferentes.

Ali, a dois, repartiam as tarefas de forma a cada um cumprir a sua, e raramente as dividiam para serem cumpridas a dois. Autonomamente trabalhavam o trabalho que o monte pedia. Um lavrava, o outro cuidava dos animais; um colhia enquanto o outro limpava a casa; um cozinhava enquanto o outro podava. E assim se afastavam durante o dia prezando os momentos que, mais tarde, tinham juntos.
(continua)

Desertos (VI)

(continuação)

5
DOMINGO

Vasco acordou e logo que abriu os olhos estranhou a cama e o tecto que o cobria. Olhou pela janela aberta de par em par e a rede mosquiteira que a cobria contribuiu decisivamente para relembrar o local onde estava. O calor fazia-o suar. Ouviu barulho ao longe no qual reconheceu as vozes de Luis e Inês. A seu lado Luísa dormia profundamente, apesar do suor que igualmente empapava a sua camisola.
Quando se ergueu lançou-se para o chuveiro, que atingiu sem se cruzar com alguém, onde a água fria o salvou do incómodo calor. Vasco era alto e muito magro. Com um metro e oitenta pesava menos de setenta quilos. Sempre foi assim, seco, como a corda tensa de um arco. Tinha mãos finas, com dedos muito compridos, e movia-se com a ligeireza de um gato, silenciosamente, como se o espaço se abrisse à sua frente para o deixar passar logo se fechando nas suas costas.
Visivelmente mal disposto procurou os donos da casa que ouvia na cozinha. O relógio marcava 09h 10m.
- Bom-dia.
- Bom-dia, dorminhoco. – responderam em uníssono.
- Já estão levantados há muito?
Luis consultou o relógio.
- Há mais de três horas.
Foi a vez de Vasco conferir os ponteiros.
- Mas... caíram da cama?
- Não, Vasco. Aqui há que aproveitar o nascer do sol. E nestes dias de Verão fazer o mais possível antes do calor apertar e nos cozer.
- Podiam ter-nos acordado, para podermos ajudar.
- Deixa estar. Vão ter muito tempo para trabalhar. Hoje é dia de descanso.
- Além do mais, - completou Inês, - Tivemos ajuda. – Com o olhar apontou para a janela. Vasco ergueu os olhos e focou a vista para o exterior luminoso. Nuno estava em pé ao sol, com o casal de rafeiros alentejanos a brincar junto a si. Contemplava o horizonte e notava-se na sua roupa o suor e a sujidade da actividade que já desenvolvera até àquela hora.
- O Nuno?
- Qual é o espanto?
- Bem, Inês, não me recordo de ver o Nuno alguma vez acordar antes de mim, quanto mais fazê-lo para trabalhar.
- Estranhou a cama, a casa. E depois, para ele a pedalada que fizeram foi um exercício menos extraordinário. O seu corpo precisa de actividade da mesma forma que precisa de descanso, e logo que nos ouviu apareceu. Deu uma ajuda a alimentar os animais.
- E que posso eu fazer para ajudar?
- Tu? Nada.
- Nada?!
- Nada! – riram os donos da casa. Inês explicou – Hoje é domingo. Ao domingo não se trabalha. Dá-se comida aos animais e já chega.
- Vocês respeitam o descanso domingueiro?
- Quando para cá viemos este monte não só era a nossa casa como o nosso trabalho. E os dois confundiram-se, entrelaçaram-se como um novelo de fio nas patas de um gato.
- A certa altura – continuou Luis, - reparámos que tudo o que fazíamos era trabalho. Não tínhamos períodos de lazer, não líamos um livro, ouvíamos um disco ou sequer brincávamos um com o outro. Os dias sucediam-se em rotina, sem marcadores temporais e apenas preenchidos pelo trabalho que manter o monte exigia.
- Foi então que ressuscitámos o domingo. Pegámos no calendário e dissemos “ao domingo não se trabalha, repousa-se”. Hoje é domingo.
- Bom, sendo assim o melhor é aproveitar. Amanhã já quero contribuir.
- E assim farás. Mas agora acompanha-nos no pequeno-almoço. Enquanto o preparamos vai dizer ao Nuno para tomar um duche. Depois faremos uma visita guiada.

O ritmo diário de Luis e Inês era definido pela natureza, pelas plantações, pelos animais. Normalmente acordavam com o nascer do sol, ganhando tempo de descanso nas noites de Inverno, perdendo-o agora que estavam cada vez mais curtas à medida que o calor caminhava para o Verão. Comiam então qualquer coisa leve e rápida e iam tratar dos animais. Alimentá-los. limpar-lhes o cativeiro, deixá-los sair, ordenhar a vaca e as ovelhas, recolher os ovos.
Regressavam a casa e então comiam novamente, desta feita um substancial pequeno-almoço, com o leite ainda morno que tinham recolhido e ovos frescos.
Depois separavam-se. Um ia para a horta, ou para o pomar, ou para a seara, cuidando do que fosse necessário, consoante a época do ano. Outro cuidava da casa, mantendo-a limpa e arrumada, fazia queijo, preparava alimentos, colhia frutos, certamente havia tarefas para todos os gostos e os dias pareciam sempre pequenos para as completar.
Assim que o calor fugia, era à noite que acendiam o forno de lenha aproveitando para aquecer a casa enquanto faziam pão para os dias seguintes.
Ao domingo, porém, entregavam-se ao descanso.


Logo que saiu da protecção da casa, defendida por providenciais redes mosquiteiras, Vasco sentiu-se violado por dezenas de moscas que, indiferentes aos seus movimentos e sacudidelas vinham poisar-lhe no corpo e lamber o suor que lhe dava brilho. Incomodado, tentou ignorá-las, mas as moscas zuniam à sua volta como explorando um novo pitéu. Olhando para Luis reparou que os estúpidos insectos se limitavam a voar à sua volta sem contudo nele tocarem.
- Como raio fazes isso?
- O quê?
- Com que as moscas não poisem em ti.
- Com o tempo. Vais ver que a natureza é milagrosa e dentro de algum tempo terás este dom. – riu. – Quando vim para cá viver também me sentia devorado pelas moscas. Mas depois de muito me agitara, incomodar, e ser mordido deixei de ser atractivo para elas. Hoje em dia voam à minha volta e aprendi a ignorá-las, ao seu zumbido horrível.
Foi um período de adaptação complicado para Luis. A sua pele queimada do sol, seca do sal, não estava habituada às moscas que teimavam aterrar na cabeça careca. A vida exigente do monte roubou-lhe a obesidade ganha em anos de cerveja da marinha, da qual apenas guardou uma pequena proeminência abdominal.
Enquanto agitava a mão à volta da cabeça, Vasco inquiriu esperançado:
- E isso durou muito tempo?
- Os dois primeiros Verões. – a gargalhada de Luis foi uma espada de desalento no recém-chegado.
Ainda o sol ia a meio da sua ascensão e já o termómetro roçava os trinta graus centígrados, quando Luis e Vasco iniciaram um passeio pela propriedade. Pouco tinham andado quando apareceu Nuno, correndo ligeiro.
- Posso ir convosco?
- Naturalmente.
Não muito longe da casa estava a linha da margem da albufeira. Luis foi explicando, recordando a Vasco algumas coisas que em tempos lhe contara e revelando a Nuno a história daqueles terrenos.
- O monte era dos meus avós maternos. Lembro-me de, em pequeno, vir para cá nas férias grandes e viver o campo com um desmesurado entusiasmo, entre animais e a rédea solta que a vida no campo me concedia.
“Nessa altura, se quisesse um banho refrescante tinha que andar bastante, até um vale ali para Norte. – disse apontando um ponto indefinido na massa de água que se estendia à sua frente. – Quando falo em vale vocês percebem... nada de fundo, apenas um espaço longe, entre dois montes.
“Depois veio esta barragem. O meu avô tinha morrido e tentámos aproveitar a ocasião para levar a minha avó para Lisboa. Mas ela não quis ir para a cidade. Ficou aqui até morrer, sozinha. Com a construção da Barragem dos Cardeais expropriaram uma parte do monte. Ficámos com menos terra mas com a água da albufeira à beira da casa. A maquia que pagaram não foi gasta a não ser para ir pagando a um casal que cá vinha cuidar das terras e dos animais e tratar da velhota.
“Foram eles quem a encontrou, um dia, na cadeira de baloiço. Teve um fim santo, pacífico, aos oitenta e quatro anos.
- E então herdaste o monte.
- Bem como o dinheiro da expropriação, com o qual fiz as obras trazendo esta casa ao século XXI, aliás, trouxe o século XXI a esta casa.
- Como assim? – inquiriu Nuno.
- Um amigo nosso, de quem nada sabemos há alguns anos, foi quem redesenhou o monte tal como ele está agora.
- Também nunca mais soubeste do Rafael?
- Nada.
- O que lhe aconteceu? – a pergunta de Nuno, curiosa, entrava no passado que não lhe pertencia.
- O Rafael queria à força fazer uma viagem à Terra do Fogo. Era o seu sonho. Assim, um dia depois do divórcio, emalou as câmaras fotográficas e os livros de esquissos e partiu. Estava por lá quando o choque energético pôs fim aos voos entre a Europa e a América do Sul. E, simultaneamente, ocorreram graves e sangrentos levantamentos populares para aquelas bandas.
- Nunca mais ouvimos falar dele. – completou Luis.
- Ainda deve estar por lá.
- Esperemos sinceramente que sim. Era sinal de que ainda estava vivo.
“Mas, dizia eu, o Rafael, que era arquitecto, recriou todo o monte. Reconstruímos a casa e dotámo-la de auto-suficiência energética. Aproveitando generosos incentivos fiscais instalámos um gerador eólico e painéis solares para a electricidade. Reconstruímos o velho moinho que tira a água do poço para um reservatório.
“A casa foi refeita num misto de materiais tradicionais e novas tecnologias. Como tal, conserva a temperatura amena, afastando o frio no Inverno e o calor no Verão. A água é gerida com equipamentos reguladores que evitam o desperdício, controlando a pressão e o débito. Já agora, não se admirem da água parar no duche a cada dois minutos. É um temporizador de aviso que ajuda cada um a lembrar-se que estamos a gastar água há dois minutos. Basta fechar a torneira, esperar uns segundos e abri-la novamente para voltar a ter água.
-E eu que pensava que a vossa bomba não regulava bem... – sorriu Nuno. – E quanto à casa, aumentaram-na?
- Não, quer dizer... só um bocadinho, para melhor distribuir o espaço.
Enquanto a conversa corria, caminharam ao longo da margem e rumaram em direcção a um pavilhão em forma de meia cana deitada, lembrando hangares em campos de aviação. O cheiro que se sentia não deixava margem para enganos: ali estavam os animais.
-Pois hoje de manhã, Vasco, o teu filho esteve aqui connosco e já aprendeu parte do ofício: dar de comer aos animais. Hoje em dia o barracão, que é como chamamos a esta estrutura, serve essencialmente de abrigo para os animais, de celeiro e de arrecadação.
Entraram. Ao contrário do que seria de esperar pela vista do exterior, por dentro o barracão não era um espaço amplo e contínuo. Paredes delimitavam transversalmente o comprimento da construção dividindo-a em compartimentos que comunicavam entre si por uma única porta larga. Percorrendo-os de porta em porta passaram pelo galinheiro, pela pocilga, pelo redil com uma dúzia de ovelhas, e finalmente o curral onde se encontravam confinados uma vaca e um boi. Seguiu-se um espaço de forragem e a última divisão albergava alfaias agrícolas e uma enorme diversidade de caixas, sacas e embrulhos de conteúdo reservado. Luis foi explicando.
- As galinhas e os porcos são os mais resistentes. Aguentam-se bem e quando o tempo está mais ameno até os soltamos. Tentei criar coelhos, mas assim que o calor apertava morriam com uma doença qualquer, pelo que acabei por desistir. Às vezes apanhamos um coelhito selvagem e lá temos petisco.
“Também tivemos cabras. Mas uma pestilência generalizada obrigou-me a matar todas. Não arrisquei de novo, ficando-me pelas ovelhas das quais se aproveita o leite, a lã e, por fim, a carne.
“Temos ainda a vaca e o boi. Não são compatíveis pelo que não nos deixarão descendência, o que é um problema. Aproveitamos o leite, que é muito. Acabamos por deitá-lo fora porque é impossível consumir tudo o que uma vaca dá. Convosco sempre irá haver um acréscimo do consumo, mas mesmo assim teremos produção excedentária.
- Parece os tempos de União Europeia. Se continuas a exceder as quotas ainda pagas multa. – gargalhou Vasco.
- Mas com o leite fazemos queijo, iogurte... ou antes, kefir, porque já perdemos as bactérias lácteas. Ou seja, fazíamos os iogurtes a partir de outros. Mas um dia estragou-se a produção e já não havia lojas onde comprar iogurtes para os substituir. Valha-nos o kefir, que parece indestrutível.
“O boi só tem utilidade para puxar as alfaias e carregar cargas pesadas. É mesmo uma besta de carga. A forragem que temos aqui é apenas a de consumo para os dias mais próximos, pois fazemos a silagem ali naquele edifício branco. – apontou pela porta para uma estrutura de madeira e pedra que se erguia a uns cinquenta metros.
- O meu pai disse-me que o Luis era marinheiro. Como aprendeu a cuidar dos animais?
- Boa pergunta. No fundo sou um autodidacta. As regras básica aprendi-as com os meus avós e a sua sabedoria empírica de uma vida no campo. Mas quando decidimos vir para cá, açambarquei dezenas de livros técnicos de criação, veterinária, agricultura, silvicultura, tudo..., tudo aquilo a que consegui deitar a mão. Inclusivamente fiz download de muitas coisas que gravei em vários DVDs. Toneladas de informação virtual que naqueles belos tempos estavam ali, ao alcance de uns cliques. Tenho saudades do tempo em que quando tínhamos uma dúvida bastava ir ao Google.
- E leste tudo? – questionou Vasco.
- Nem pensar. Já li muito, mas ainda vou à procura de muita coisa, estudo e aprendo bastante.
- Visto que se me acabou a escola, o melhor é eu também me dedicar ao estudo de tudo isso.
- Por favor, Nuno, faz isso. Será sempre bom para ti, mas também para nós. Deve sempre haver mais gente a dominar a tecnologia da qual dependemos.
- Esse foi um dos nossos problemas. Chegámos a um ponto em que ninguém sabia produzir aquilo que nos habituámos a ter desde a nascença. Só consumíamos. E quando deixámos de poder ir às compras quedámo-nos inertes. Muita gente assim ficou.
- Dou-vos um exemplo disso. Sabão. Precisamos de sabão para nos lavarmos, para a roupa, para a casa. Graças a uma enciclopédia que tinha para aí e a uma “googlada” que gravei nos idos tempos da internet, passámos a fazer sabão. Não é a mesma coisa, mas serve. Ainda fui a tempo de açambarcar soda cáustica suficiente para um longo período. Depois... depois tentarei fabricá-la. Já vi que o processo implica electrólise, mas não percebi muito bem como. Na altura certa irei estudar melhor a questão.
- Recordo ter uma vez ouvido dizer que antigamente se lavava a roupa com cinza. – disse Vasco.
- E antes disso só com água. E cheirávamos mal porque se desconheciam os milagres do sabão e do perfume. Esperemos que a humanidade não recue tanto.
Enquanto prosseguia a conversa sobre o destino do suor da humanidade, continuaram a caminhar. Passaram pela horta onde cresciam tomates, couves beringelas e outros vegetais. Estruturas de canas e ramagens protegiam as plantas da inclemência do sol mais quente. A proximidade à água da barragem matava-lhes a sede. Adiante um largo espaço restava, preparado mas aparentemente incultivado. Era o pousio.
Seguindo novamente pela margem deixaram a horta para trás em direcção a uma vintena de oliveiras, de ar robusto mas não velho. Virando as costas à albufeira percorreram um estreito caminho pedonal gravado na encosta que começaram a subir. Do alto do monte viram então a seara, loura, estendendo-se num rectângulo parecido com um campo de futebol. Mais para a direita uma área semelhante acoitava a vinha. As suas fronteiras rectilíneas demarcavam aqueles espaços do pasto que cresceria em redor quando o calor abrandasse e as primeiras chuvas caíssem. Aqui e ali sombreavam alguns sobreiros. Numa dessas sombras se sentaram. Era domingo. Importava descansar e aproveitar a conversa. Uma brisa quase imperceptível agitava suavemente o mar dourado.
Uma hora volvida Inês e Luisa juntaram-se-lhes, finda a sua versão da apresentação do Monte das Murtas. Discutiram o que iriam almoçar e sortearam Nuno e Luis para o fazer. A contra gosto desceram enquanto os outros riam da sua desgraça, e se entregaram ao prazer da inactividade, entre o som das cigarras e o sacudir das moscas.
(continua)

24.11.08

Desertos (V)

(continuação)
4
FAMÍLIA

Havia muito tempo que os quatro se conheciam. As suas relações nasceram tinham Inês e Vasco cerca de dezoito, dezanove anos. Da mesma idade, foram colegas de escola até o 12º ano, frequentando o mesmo círculo de amigos ao qual trouxeram os companheiros que conheceram fora dele. A partir de então seguiram as suas vidas trilhando percursos bem diversos. Mas a amizade que se consolidou com a idade adulta aproximou-os mesmo nas horas difíceis.
Luis é o mais velho, hoje com quarenta e oito anos, e vive sem saudades dos vinte e dois anos de Marinha. Apesar de viajados, as limitações da Armada Portuguesa mantiveram-no por terra com frequência bastante para conquistar uma vida fora do uniforme. Assim conheceu Inês, seis anos mais nova, numa festa de uns amigos dos seus pais onde por acaso se cruzaram. Empenhada no início do curso superior de gestão encontrou no marinheiro o bastião de conforto, segurança e carinho que então necessitava. Era ele o porto que a acolhia nas tormentas universitárias às quais se entregou desejosa de ser sempre a melhor, e a partir do qual navegava durante as calmarias. Por arrasto aprendeu a amar Luis.
Lado a lado, garantindo as ausências náuticas o espaço de liberdade e dedicação à carreira que Inês buscava, construiram a sua vida. Quando Inês ficou desempregada, vendo a sua carreira precocemente interrompida, agradeceu a oportunidade. Sentia o desgaste da entrega que sempre oferecera corroer-lhe a saúde física e mental.
Com a situação de reserva de Luis a confiná-lo a terra, agarraram a hipótese de viver a calma campestre e fugir ao previsível descalabro das cidades. Em boa hora o fizeram.
Quando nasceu, a relação de Vasco e Luísa era criminosa, e escondida navegou durante dois anos. Luísa estava à beira de completar quinze anos e já Vasco somava vinte. Porém, o acaso levou a que se amassem quase instantaneamente quando se conheceram numa praia, juntamente com um grande grupo de amigos de Verão. No ano em que Luísa chegou à maioridade casaram-se. Já então Vasco herdara o negócio de antiquário do pai e assim sustentou o casal durante o período em que a sua mulher frequentou o curso de enfermagem. Três anos depois nasceu Nuno.
A proximidade dos casais era tanta que desde miúdo Nuno tratou Luis e Inês por tios. Os seus pais não tinham irmãos e aqueles dois, sempre presentes, eram o que mais perto de uma família tinha.
A família reuniu-se de novo, debaixo de um calor abrasador e devido a desagradáveis circunstâncias.
Em família partilhavam agora a mesma casa.
(continua)

Desertos (IV)

(continuação)
3
TRABALHO,
MUITO TRABALHO

Sentados à mesa perante um jantar de beringelas recheadas foram continuando a conversa.
- E agora que cá chegámos, com o que é que podemos contar?
- Trabalho, Vasco, muito trabalho.
- Sim, - riu Inês – Nós convidámo-vos porque precisamos de gente para trabalhar e a mão-de-obra agrícola é cada vez mais difícil de arranjar.
- Agora a sério, - recomeçou Luis – A vida aqui não é fácil. Dependemos do trabalho para comer. Logo, agora que somos mais, precisamos de mais trabalho.
“Há inúmeras coisas para fazer aqui no Monte. Desde limpar a casa e cozinhar a tratar dos animais, das plantas, passando pelas reparações e pela ocasional pesca. Amanhã faço-vos uma visita guiada. E isto inclui-te, Nuno. A escola acabou. É tempo de crescer à força e ser adulto. Vais ter que trabalhar como qualquer um de nós. E o pior... – concluiu rindo -, é que nos arredores não há ninguém da tua idade. Esta é uma zona tramada para conhecer raparigas.
- Como estás de energia? Os teus sistemas funcionam?
- Felizmente. Quando pedi que me desenhassem a casa exigi logo auto-suficiência energética. A edificação está pensada para o melhor desempenho térmico possível. A reduzida perda de energia conseguida garante que o frio e o calor fiquem lá fora, assegurando um ambiente ameno no interior.
“Temos electricidade vinte e quatro horas por dia graças ao gerador eólico e aos painéis solares. Desde que consumida moderadamente nunca faltou. Só a capacidade de armazenagem é que é limitada pelo que esperemos não venham a falhar os sistemas. Contudo, esqueçam longos banhos quentes no Inverno porque não podemos gastar energia para toda a água. Enfim, de Inverno o duche morno parece frio e enrijece corpo e espírito.
- E o que produzem vocês aqui no monte? – interrogou Luísa. As olheiras que pintavam o seu olhar revelavam todo o cansaço acumulado durante a viagem desde Lisboa. Luisa era uma mulher baixa, morena que exibia um par de penetrantes olhos azuis. O seu corpo equilibrava-se num par de pernas muito fininhas, apesar do excesso de peso que suportavam. Quem a conhecera no passado reconhecia facilmente que as carências alimentares e os esforços físicos a que se sujeitara lhe tinham levado quase vinte quilos.
Foi Inês quem lhe respondeu:
- De tudo um pouco. O ideal é fazer pequenas colheitas de diversos produtos para garantir variedade e não correr o risco de uma praga, ou uma alteração climática estragarem um ano de trabalho. Temos horta, cereais, pomar, porcos, abelhas, uma vaca, coelhos, galinhas... pesca-se de vez em quando e trabalha-se para ter tudo em marcha.
- Há pouco falavas do isolamento, Luis. Tens comunicações?
- Não, estamos isolados. Como disse, apanhamos a rádio nacional e nada mais. Tenho uns walkie-talkies para consumo pessoal, até três quilómetros mais ou menos, que muito de vez em quando apanham outras comunicações.
“Mas não falo com quase ninguém. Os montes à volta estão vazios. O mais próximo habitado está para aí a oito ou dez quilómetros, e vive lá um casal de velhos. De vez em quando vou lá ver deles, nada mais. Uma vez por mês passa aí um GNR, a cavalo. Diz olá, leva uns produtos e conta-me as novidades. Não vamos a Estremoz vai para mais de um ano, quando fui levantar as últimas reformas e fazer umas compras e me deparei com os bancos fechados.
- Como arranjam as coisas que não se cultivam ou criam? – pela primeira vez Nuno mostrava-se interventivo.
- Agora já não arranjamos. Temos muita coisa em armazém, na qual íamos aplicando o dinheiro que ganhávamos. Previmos que iria chegar o dia em que ter dinheiro de nada serviria, por isso acumulámos medicamentos, lâmpadas, adubos, sementes, sei lá. Olha!, papel higiénico, até. Mas está a acabar-se. E agora convosco... cedo teremos que pensar numa alternativa.
Riram-se perante as ideias que cada um de imediato teve para resolver essa necessidade, mas por trás desse riso escondiam-se a inquietação e a apreensão sobre um mundo novo que se consolidava sobre as ruínas da vida que durante uma vida deram por assegurada.
- Aprendemos a viver com tudo. – relativizou Luísa.
- Sim, mãe. Quando há três anos acabaram com a net ia ficando doente, Desde sempre a dei como garantida. Cresci na net e ao perdê-la senti um vazio. Como poderia eu comunicar ou chegar ao conhecimento sem essa ferramenta? Como conseguiam vocês crescer sem a net? Foi algo que comecei a aprender com o fim da rede, com o fim das telecomunicações.
- Há mais coisas que se perderam. – interveio Luis. – Conquistas com as quais nascemos e que se sumiram sem que conseguíssemos evitá-lo. Ter a comida e tudo o mais ao alcance de um braço nas prateleiras do supermercado, bastando para tanto um cartão e uma assinatura; a televisão, os jornais, os automóveis, a paz, a segurança...
“Hoje em dia estou aqui e tenho medo sempre que vejo pó na estrada. Será desta que bandidos vêm saquear o monte?, pergunto-me.
- E se fosse só isso... temos medo que não chova... ou chova demasiado. Do calor, do frio, tudo o que implica com a nossa subsistência é uma dor de cabeça.
- Nesse aspecto, as diferenças para a vida da cidade, são menos que as semelhanças. As angústias da insegurança, da falta da comida, do que será o amanhã, são idênticas. Que saudades tenho de ao domingo saber de cor o que ia dizer, segunda-feira. – arrematou Vasco parafraseando Jorge Palma.
(continua)

19.11.08

Desertos (III)

(continuação)
2
NOVOS HÁBITOS

Oito anos atrás, Luis e Inês leram os sinais, fizeram futurologia e decidiram mudar de vida. Sem filhos foi mais fácil assumir o risco. Em bom tempo o fizeram.
Os primeiros sinais de alarme vieram do Médio Oriente quando os estados do Golfo deixaram de conseguir esconder que os poços estavam a secar. Durante anos tinham chocado o mundo com acordos de redução da produção do petróleo, inflacionando o preço do barril para lá da incrível barreira dos cento e cinquenta dólares por barril. Foram apelidados de especuladores, de exploradores dos outros países dependentes do combustível fóssil. Porém, a espionagem industrial, a investigação jornalística e as oposições expectantes chegaram ao bem guardado segredo e expuseram-no. Vinte anos antes do previsto fechava-se a torneira do ouro negro. Dependentes dessa fonte de riqueza os países produtores, em particular os do Golfo, começaram a ruir sob o punho de massas revolucionárias.
As repercussões mundiais não foram imediatas. Nos países menos desenvolvidos o choque foi atenuado pela fraca dependência energética. Nos países ditos mais ricos, os recentes investimentos na energia nuclear davam frutos e alimentavam a esperança. Foram anunciados programas massivos de alteração dos motores de combustão interna pelos limpos e ecológicos eléctricos, o que animou a economia. Sujeitando-se a racionamentos cautelosos e com algumas alterações a hábitos consolidados conseguiram continuar a sua vida autista.
Foi por esta altura que Luis e Inês abandonaram Lisboa. Ele acabara de passar à reserva, militar da Armada que foi. Com quarenta anos deixou de estar embarcado, pois reduzida era a capacidade financeira para manter a navegar navios sedentos por diesel. Pouco tempo o quiseram no Arsenal, logo o mandando para casa, com o ordenado por inteiro e zero de actividade.
Por sua vez, Inês progredira muito rapidamente na empresa estrangeira instalada no mercado português que a acolhera logo à saída do curso. Com 33 anos ascendeu a vice-directora para os recursos humanos. Um ano mais tarde a empresa fechou portas a todas as iniciativas além-fronteiras. O acordo de despedimento por extinção do posto de trabalho foi generoso. O mealheiro aumentou, dando o empurrão que faltava.
Venderam o apartamento onde viviam e mudaram-se para o Alentejo, para a casa recém-construída sobre as ruínas do antigo Monte das Murtas. Foi assim que se mudaram para um monte alentejano, virando costas à cidade.
Com o passar do tempo a vida em Lisboa começou a revelar o grau de dependência do petróleo a que chegara. O aumento generalizado dos combustíveis elevou a inflação sem contemplações perante a incapacidade de todos os sectores mudarem a sua fonte de energia. Era assim em toda a União Europeia. E nem Bruxelas conseguia ajudar a Lusitânia.
As pequenas empresas começaram a fechar. O desemprego e a instabilidade social associada subiram em proporção geométrica. Os géneros alimentícios começaram a faltar, pois que transportá-los para a cidade era muito caro. Cultivá-los, produzi-los já por si era muito caro. A fome espreitou e entrou sem pedir licença. Com ela veio a violência.
Da parte do Governo foram adoptadas medidas impopulares mas que conseguiram a almejada contenção de danos. A ruína do Estado moderno foi adiada.
Toda a energia foi canalizada para quatro pontos apenas: Grande Lisboa, Grande Porto, Aveiro e Coimbra. Todo o resto do país ficou às escuras, parado, sem luz, calor ou meios de transporte. Electricidade, gás, gasolina, gasóleo passaram a ser exclusivos daquelas cidades. Logo nasceu o mercado negro da energia sem, contudo, chegar a prosperar por não haver quem sustentasse o negócio.
As estradas encheram-se de caminhantes em direcção às cidades, esperando aí encontrar a vida perdida no passado. Pelo contrário, iam ao encontro da fome, do Exército e da polícia em acção repressiva tentando conter a multidão descontente.
Havia 3 anos que Luis e Inês tinham abandonado Lisboa quando, durante o Verão, e perante uma assustadora vaga de calor, a população enfraquecida quebrou e começou a morrer. Juntamente com o calor e a fome um surto de ébola irrompeu na Europa do Sul empurrado de África. Os estados debilitados lutaram como puderam. A Europa Central e do Norte contribuiu generosamente com meios de combate à doença que queriam longe dos seus países. Durante seis semanas de renhidos combates clínicos sem tréguas acumularam-se os mortos. Contido o surto restou uma desoladora paisagem, particularmente nas cidades que viram um terço da sua excessiva população perecer exangue.
Enquanto a Sul se combatia a doença um coincidente evento em França e nos Estados Unidos mergulhava em horror e desespero os optimistas do resto do mundo. Com um intervalo inferior a quarenta e oito horas, dois dos reactores nucleares da última geração, ditos infalíveis e indestrutíveis, seguros, entraram em fissão descontrolada e repetiram Chernobyl, como um dia os responsáveis disseram não ser possível.
Outros alertas mostraram evidentes falhas de segurança. Uma a uma as centrais nucleares foram fechando as suas portas. O caos energético entrou com um grande estoiro nos países mais ricos que até ali tinham brincado aos poderosos que lançam uma mão em ajuda dos necessitados. Agora que também estavam em maus lençóis ninguém mais os podia ajudar.
Logo nesse Inverno, em Janeiro, uma vaga de frio apanhou as gentes desprevenidas. Sem electricidade nem gás os aquecedores de nada serviam. Os mais frágeis renderam-se. Ao fim de quatro anos de provações, tinha desaparecido um terço da população portuguesa. Alguns países tiveram mais sorte. Outros nem por isso.
Nesse ano a União Europeia desenvolveu o programa de emergência das barras energéticas. Inicialmente concebidas como suplementos alimentares rapidamente se tornaram no único alimento disponível nas grandes cidades, para além dos poucos vegetais que conseguiam ser cultivados em pequenos quintais, terraços, canteiros e vasos
Foi graças à produção massificada destas barras que os governos conseguiram, finalmente, um trunfo para se justificarem e restabelecerem padrões de vida numa nova sociedade que emergia ao fim de quatro anos de novos hábitos.

(continua)

Desertos (II)

(continuação)
Pouco depois repartiam-se pelos sofás da sala, copos de água cheios, pão, queijo e fruta ao alcance da mão. Os risos, os suspiros, os ais e uis de quem muito pedalou perderam-se em minutos de bem-estar. O silêncio que tomou lugar foi interrompido pelo início da conversa que sabiam inevitável.
- Há quanto tempo estão na estrada?
- Três dias, Luis. Três dias.
- Como é que aquilo está? Piorou assim tanto? O que foi que vos convenceu?
- Continuam sem notícias? – a pergunta de Vasco fugiu à resposta.
- Aqui pouco chega. Só a rádio nacional emite até ao Alentejo. E já não consigo ouvi-la tamanha a desinformação.
- Lisboa está entregue aos bichos. Entre bandidos, polícia e exército já pouco espaço há para o cidadão comum. Contudo, todos os dias chega mais gente à capital.
- Porque é que finalmente vieram? – Inês insistia na pergunta.
- Há mais de seis meses que lamentávamos não ter vindo na última oportunidade. Tivemos um carro preparado, com gasolina e tudo. Mas deitámos tudo por terra. Por estupidez.
- O Vasco não se perdoa. – atalhou Luísa – Mas não quis deixar tudo para trás, quis vender a casa, juntar o dinheiro, salvar o mais possível. Já era tarde.
- Talvez ainda não fosse. Mas logo no dia seguinte alguém “adivinhou” os nossos planos e quatro miúdos armados entraram na garagem e levaram o carro. Senti que perdera o momento. Senti-me estúpido.
- Pior foi que, duas semanas depois, os bancos fecharam portas. Foi uma atitude concertada. De um momento para o outro o dinheiro desapareceu. Nesse mesmo dia teríamos arrancado, não nos faltasse uma terceira bicicleta.
Inês e Luis ouviam em silêncio a pausada descrição do casal amigo. Revezando-se, Vasco e Luísa continuaram sem rodeios ou interrupções, contando a uma voz a história vivida na pele.
- Encontrei a terceira bicicleta numa altura em que já vigorava o recolher obrigatório nocturno. De dia as barreiras do exército e dos bandidos castraram-nos a iniciativa. Até ao dia da Grande Batalha.
- Grande Batalha?
- Fartas do espírito securitário, as multidões crescentes dos subúrbios planearam uma marcha sobre Lisboa. Avizinhando-se o confronto, o exército concentrou as defesas ao longo da primeira circular, a Circular das Colinas. Confiantes que esta seria uma oportunidade a não perder, planeámos a fuga. Não só queríamos chegar aqui, e inteiros, como queríamos assegurar-nos de que não traríamos atrás de nós qualquer perigo para vocês.
- A meio da tarde os suburbanos passaram pela nossa casa. Quando o rumor esmoreceu, arrancámos lentamente. Tentámos passar despercebidos até alcançarmos a linha-férrea do Norte, apesar de seguirmos exactamente em sentido contrário ao da corrente.
- Queríamos fugir às estradas...
- E conseguimo-lo. Empurrando as bicicletas e caminhando pelas pedras da via ferroviária durante toda a noite. Ao longe os incêndios de Lisboa iluminavam o céu. Não fazemos ideia do resultado da Grande Batalha.
- No rádio, há dois dias, falaram em ataques concertados de delinquentes que obrigaram o exército a abrir fogo. O Governo reivindicou mais de cinquenta delinquentes abatidos. – informou Luis – A ver por exemplos do passado, o verdadeiro resultado terá sido um banho de sangue sem precedentes.
- Era madrugada quando passámos a ponte em Vila Franca de Xira. Fizemos ainda oitenta quilómetros nesse dia e acabámos a dormir ao relento, sempre com medo de salteadores. – continuou Vasco.
- Só no dia seguinte nos sentimos mais seguros. Desde Vila Franca de Xira que não vemos vivalma. Ainda assim demos uma volta monstruosa para termos a certeza de não estar a ser seguidos. Hoje em dia todo o cuidado é pouco.
- Como estão agora os abastecimentos em Lisboa?
- Olha, Luis, cada vez mais gente só pode dar numa coisa: há cada vez menos de tudo, - respondeu Vasco – pelo que estou farto de comer barras energéticas que é só o que o Governo põe à venda e distribui.
- Sim, porque cada vez se vêem menos, tanto mais que não há dinheiro e é difícil contentarmo-nos com as senhas de racionamento.
- Por outro lado a electricidade já só é ligada entre as oito e as nove e meia da noite. E está sempre a cair. Telefones e gasolina só para o compadrio politico-governamental. A água na torneira é pouca mas ainda chega. Gás é coisa que já não existe.
- Mas a fome faz chegar a Lisboa muita gente, na esperança de arranjar comida. Nada mais. Quem chega só tem que encontrar uma casa vazia e entrar.
- As pessoas nada sabem fazer para sobreviver. Por isso fogem do campo para a cidade, onde qualquer um pode tentar safar-se no cada vez mais diversificado mercado negro. - concluiu Vasco.
(continua)

18.11.08

Desertos (I)


O Alentejo não é um deserto, mas um refúgio.





1
POEIRA

Ao longe, uma ténue nuvem de poeira anunciou que alguém se aproximava, alguém vinha calcorreando o estradão de terra amarelada, por entre curvas e oliveiras velhas.
O sol já procurava abrigo por trás dos longínquos montes que definiam o horizonte. A planície dourada estendia-se entrecortada por zonas verdes e desertos pedregosos, por pequenas colinas e vales irrisórios, por sombras e luz, rasgada pela serpente que alguém um dia definiu como o melhor acesso àquela casa. Ali perto a água murmurava na margem barrenta e ainda reflectia o brilho alaranjado com força suficiente para ofuscar quem para si olhasse. Ouviam-se também cigarras, zunidos de moscas, mas pouco mais. O calor deixara de sufocar, tornando-se agradável com a ajuda de uma quase imperceptível brisa de Norte.
- Vem aí gente. – anunciou para a mulher que dormitava à sombra da oliveira mais antiga das redondezas com o terceiro volume do “Em busca do tempo perdido” de Proust aberto e abandonado sobre o colo.
Alertados pela voz do dono, dois rafeiros alentejanos ergueram-se rapidamente e em silêncio olharam o pó à distância, mais ouvindo que vendo, de orelhas espetadas e cauda parada. A mulher levantou-se com o livro na mão, esfregou os olhos e focou o olhar lá no fundo, onde a distorção provocada pelo calor impedia a nitidez.
- Quem será?
- Não faço ideia. Serão no máximo duas pessoas, a julgar pelo pó. E não vêm a pé, pela velocidade que se adivinha.
- Não oiço motores.
- Não os terão.
Em silêncio esperaram que uma curva mais exposta revelasse a origem daquele pó. Os cães sentaram-se, percebendo que ia demorar a acontecer alguma coisa. Ainda assim, não desarmaram a atenção. Parecia até que respiravam mais devagar para não incomodar.
Os minutos correram ao som do campo até que conseguiram ver dois vultos de bicicleta contornar a primeira curva que expunha os viajantes no estradão. Cientes disso, os ciclistas pararam, olharam à distância, viram o casal junto à casa e acenaram com vigor.
- Reconhece-los?
- Não. – ainda assim, acenaram de volta, desconfiados.
As bicicletas mantiveram-se imóveis por um pouco mais. Pela forma como os dois indivíduos olhavam para trás adivinhava-se a chegada de mais gente, o que veio a acontecer quando uma terceira bicicleta vagarosamente se lhes juntou. Vinham de uma longa jornada, denunciava a bagagem que carregavam. O terceiro ciclista, manifestamente uma mulher, também olhou à distância e acenou vigorosamente.
Um sorriso largo abriu-se no rosto da dona dos cães.
- Ah! – exclamou – Já sei quem são! – anunciou com excitação.
- Quem?
- A mulher é, sem qualquer dúvida, a Luísa. Sempre vieram.
Um momento de atenção foi o suficiente para que ele interpretasse novamente as imagens, agora à luz dos novos dados. As cautelas abandonaram o seu rosto barbado dando lugar a uma gargalhada.
- Pois é! Sem dúvida que os primeiros são o Vasco e o Nuno.
Os cães partilharam a excitação, ladrando com vigor enquanto davam pulos de cauda a abanar.
- Vamos buscá-los. – disse para a mulher.
Pegaram nas suas bicicletas e lançaram-se pelo estradão. Rapidamente se encontraram, abandonando o selim e trocando beijos e abraços.
- Meu Deus, sempre vieram! – repetiu. – Devem estar estoirados.
- Já nem sinto o rabo. – disse Luísa de perna aberta.
- Decidimos aceitar o vosso convite. Espero que não haja qualquer inconveniente, Luis.
- Nunca. – respondeu este enquanto aliviava a carga da recém-chegada, tomando por sua a mochila. – Inês, leva a mochila do Nuno, por favor. – pediu à sua mulher.
- Eu estou bem, obrigado.
- Deixa-te de tretas e partilha o teu peso. – insistiu Inês estendendo o braço.
Fingindo-se contrariado, foi com alívio que libertou os ombros das amarras da sua carga.
- Mas venham. Vamos sair do sol, sentar-vos confortavelmente, encher-vos de água e comida. Depois contam-nos tudo.
(continua)