26.11.08

Desertos (VIII)

(continuação)
7
AO SABOR DO TEMPO

Com o correr do Verão foram notórios os aumentos de produtividade nos terrenos cultivados. Prepararam o Inverno com cuidado, às mãos dos novos agricultores nascidos da necessidade dos tempos. Às colheitas sucederam-se as preparações dos terrenos, as conservas, as silagens. O sol foi morrendo cada vez mais cedo. O frio apareceu de repente, sem sequer dar lugar ao ambíguo Outono que logo deixou chegar um Inverno de rigor.
As noites esfriaram. O bafo quente deixou-se ficar a fumegar durante o dia. As mãos ficaram tementes da água, cada vez mais gelada. Tomar duche passou a ser visto como um comportamento radical, perante o risco de falha energética que condenasse o banhista a trato de polé. A lenha colhida e cortada no Verão encontrou o seu destino nas chamas da lareira.
Sucederam-se aniversários, o Natal e o Ano Novo, e todos festejaram com animação, cientes que a sua vida, não obstante trabalhosa, sorria sã e prometedora.

Já em Janeiro Luis decidiu ir ver dos vizinhos. Desafiou Nuno a acompanhá-lo e, de bicicleta, os dois atacaram os menos de dez quilómetros de caminho de terra. Vestiam agasalhos que no rapaz se abandonavam de largos que estavam. O certo é que a precipitada partida de Lisboa não permitira trazer muita coisa, ficando por isso dependentes da reserva de roupa de Luis.
Enquanto pedalavam suavemente, sem pressas, o barulho das rodas no areão só era entrecortado pelo arfar que projectava densas nuvens de vapor. As orelhas e o nariz gelavam no ar frio que cruzavam.
Rapidamente chegaram a um portão de madeira, escancarado. Erva crescia no caminho, como evidência que havia muito que ninguém passava por ali. Da casa só vinha silêncio. Desconhecendo que os vizinhos velhotes tivessem sequer possibilidade de se ausentarem daquele monte pelos seus próprios meios, Luis estranhou e logo ali gritou.
- Ti’ Francisca! Eh, Ti’ Francisca!. Está alguém?
Apenas o silêncio e o eco lhe responderam.
- Oh, Ti’ Zé, está em casa? – não se viam ou ouviam as galinhas que costumavam cirandar no pátio. Não havia fumo a elevar-se da chaminé, apesar do frio que se sentia. O Sado, o cão arraçado de perdigueiro, não se manifestou.
Temendo o pior ordenou a Nuno:
- Fica aqui junto das bicicletas. Se vires alguém grita-me logo.
Nuno acenou com a cabeça dando o seu acordo. Luis avançou para a casa.
Ao abrir a porta sentiu o ar frio e malcheiroso que do interior assaltou o seu nariz, de imediato se preparando para encontrar os cadáveres dos vizinhos. Porém, algo mais se revelou que o alertou. A casa estava revirada do avesso. Mobiliário, cacos, papéis espalhavam-se pelo chão. Estacou apurando o ouvido e nada. Nem um suspiro, um estalido, nada.
Entrou calcando vidros. A luz que entrava pelas janelas, algumas sem sequer terem vidraças, iluminava com clareza o pequeno espaço. Viu uma mancha escura na parede caiada, desmaiando em sentido descendente. No chão enrolava-se o corpo de Ti’ Zé. Inerte. Decomposto.
A náusea tomou conta de si. O chão ameaçou fugir aos seus pés e teve que se agarrar à ombreira da porta. Com essa ajuda manteve as pernas firmes e o pequeno-almoço no estômago. Quando conseguiu olhar de novo o cadáver, interiorizou o avançado grau de decomposição do mesmo. A morte não era recente, mas era evidente que não fora natural. O crânio estava desfeito à pancada, esmagado e deformado, e fora a origem da mancha na parede. As mãos do velho vizinho estavam amarradas atrás das costas com fio eléctrico.
Procurou por Ti’ Francisca no quarto, onde encontrou o seu invólucro terreno estendido na cama, amarrado de pés e mãos aos quatro varões da cama de ferro. Ao vê-la Luis soçobrou, assentando os joelhos no chão. A cabeça estava desfeita tendo alimentado uma escura mancha de sangue agora seco que preenchia a cabeceira. Marcas evidentes nos lençóis denunciavam o tiro de caçadeira a curta distância, brilhando a bucha do cartucho onde outrora estivera um nariz.
Mas a piorar todo o cenário estava a nudez do cadáver, expondo os horrores que aquela mulher de 78 anos vivera antes de morrer, manietada, violada, torturada.
Uma lágrima escorreu pela face de Luis, abalada pelo soluço que sufocou. Ganhou coragem para se erguer e regressar junto de Nuno, desorientado, inseguro quanto ao que fazer.
- Estão mortos, não estão?
- Pior. Foram mortos.
- Como?
- Com extrema violência e crueldade.
- Pela sua cor vejo que o panorama não é bonito.
- Nada. – Luis sentou-se no chão. Do alto Nuno perguntou:
- Então e agora? Há perigo? Procuramos a polícia?
- Perigo não haverá, que tudo aquilo já aconteceu há muito tempo. Quanto à polícia, também não sei o que poderá a polícia fazer.
- Mas devemos dar-lhe essa hipótese, não?
- Acho que tens razão. Temos que ir a Estremoz avisar a GNR. Até lá é melhor não mexer em nada.
- Este mês ainda não apareceu o guarda, como de costume.
- É normal. Em Janeiro, depois das festas, vem sempre um pouquito mais tarde. Mas não podemos esperar por ele. Temos que lá ir.
- Então vamos. – apressou Nuno – Não me sinto bem neste silêncio de morte.
Foi em silêncio fizeram o percurso para casa.

- Mas se lhes fizeram isso... o que nos garante que não passam por aqui e nos fazem o mesmo?
- Nada nos garante, Inês. Temos apenas que interiorizar que isso é uma hipótese e estar atentos, preparados para ela.
Logo que chegaram a casa Nuno e Luis reuniram-se com os demais na sala e relataram aquilo que tinham encontrado. O choque foi rapidamente superado pelo temor.
- Já vi junto à porta a caçadeira que tens aqui. – disse Vasco – É melhor tê-la mesmo à mão.
- Uma arma de fogo é um risco acrescido. Para ser útil tens que estar preparado para a disparar contra alguém. Estás preparado, Vasco?
- Se isso for para impedir que o mal chegue a cada um de nós... sem dúvida que estou.
- Estás preparado para matar alguém? – insistiu Luis.
- Sem dúvida. Desejo é nunca ter de chegar ao ponto em que tenha de tomar tal decisão.
- Desde que aqui cheguei que esqueci a insegurança. E agora, de repente, sinto-me tão vulnerável, tão assustada. – Luisa agarrou o braço do filho, puxando-o para si.
- Calma, mãe. Tenho a certeza que aqui estamos mais seguros que em Lisboa. Mas concordo que não podemos deixar de ter cautelas. Também eu quero aprender a disparar. Nunca se sabe.
- Não!, Nuno, tu não te vais pôr a mexer em armas!
- Porquê, mãe? – o ar típico de adolescente contrariado vinha desta feita carregado de convicção.
- Porque... porque és muito novo. E eu não quero que fiques em perigo.
- Desculpa, mas acho que sou um elemento suficientemente válido para que possam contar comigo. Para tudo, incluindo isto. E quanto ao perigo... o barco é o mesmo. Com ou sem armas.
Fez-se silêncio. Luisa olhou para Vasco em busca de apoio. Este ergueu as sobrancelhas, meneando ligeiramente a cabeça, assumindo que concordava com o filho. A mulher concluiu, rendendo-se sem mais contestar.
- Se calhar tens razão.
No novo silêncio que se seguiu foram Luis e Inês quem prolongadamente se olharam. Sem uma palavra discutiram argumentos, adivinhando o que o outro dizia, partilhando a cumplicidade de se conhecerem como a si próprios. Inês falou:
- Acho que deves contar-lhes.
Três pares de olhos focaram Luis, inquisitivos. Este teve que começar.
- Esta conversa leva-nos a um episódio que tenho de vos contar. Oiçam-me por um pouco.
“Quando começaram as expropriações para a barragem dos Cardeais, o meu avô chamou-me à parte e levou-me para um passeio. Com uma enxada ao ombro foi-me contando pelo caminho, na sua voz ciciada, uma história.
“Sabes, neto – começou ele – quando as águas começarem a subir vão cobrir uma zona que, depois, ficará inacessível. O pior é que enterrei ali uma coisa que não pode por lá ficar.
“O Avô tem um tesouro? – perguntei.
“Digamos que me confiaram um. Por isso, hoje vais desenterrá-lo e voltar a metê-lo debaixo da terra cá mais para cima no monte.
“E o que é?
“Já vais ver – respondeu-me evasivo.
“Chegados a um sobreiro com dois ramos que formavam um perfeito “V”, o meu avô entregou-me a enxada, contou dez passos e indicou o local.
“Cava aqui, pelo menos um metro.- ordenou. E eu assim fiz. A terra dura foi violada e afastada. Da ferida nasceu um oleado.
Neste ponto Luis fez uma pausa na narrativa. Sorriu com a figura de estilo que usara e usou a paragem para encher um copo com água. Vasco insistiu, suspenso que estava.
- Conta lá o resto da história, pá! O que é que estava enterrado? Onde queres chegar?
- “Cuidado, não estragues o recheio. Tira-o com cuidado.- foram as palavras do meu avô. E eu fui puxando o embrulho, com todo o cuidado, temendo partir o que quer que fosse. Porém, o tacto e o cheiro desvendaram-me o segredo ainda antes do meu avô concluir.
“No chamado Verão Quente, de 1975, o país estava tenso e temíamos que pudesse estalar uma guerra civil. Os militares afectos ao Partido agarraram uma data de armas e entregaram-nas. Já sabíamos que o PS andava a distribuir G-3, pelo que o PC tinha que fazer o mesmo. Era a lei da sobrevivência, do equilíbrio de forças. A mim confiaram-me essas duas. Aí estão duas G-3 e uma data de cartuchos.
“- Não sabia que tinha sido tão activo no Partido. Pensava que só lá ia para beber um copo e jogar às cartas.
“Naquela altura tinha sangue na guelra. Julgava que íamos mudar o mundo. O que não podia era tolerar um golpe da Direita e o retorno à servidão do latifúndio. Aceitei essas armas e comprometi-me a usá-las ou cedê-las a quem as usasse em caso de guerra civil. Felizmente, poupámo-nos ao massacre.
“Essas G-3 devem estar muito mazinhas.
“Que nada. Quando as coisas acalmaram e a vida prosseguiu desmontei-as e guardei-as bem oleadas, envoltas em panos oleados e em plásticos estanques. Ficas a saber que, se um dia precisares delas, onde as vir buscar. Com os anos de Marinha que tens deves ser a única pessoa da família que ainda sabe como mexer num canhão destes.
“E assim, - concluiu Luis, - enterrámo-las noutro local e ali ficaram até há pouco tempo. Pouco antes de vocês chegarem tínhamos decidido desenterrá-las. Limpei-as, montei-as, testei-as e posso dizer que tenho duas G-3 debaixo da cama. Os cartuchos é que não são muitos, e alguns já não disparam. Mas fiquem sabendo que temos estas armas.
- Duas G-3? – questionou Vasco sem procurar resposta.
- E duas Glock, que trouxe dos Balcãs quando por lá andei. Naquela altura comprei-as por menos de trinta contos.
- Duas Glock? De 9 milímetros?
- Sim, iguais àquelas que depois andaram a distribuir pelos polícias.
- Doido! – exclamou Luísa. – Pensas que vamos brincar às guerras?
- Não. Estou só a informar-vos. Aliás, as G-3 estão numa caixa fechada, e é lá que pretendo que continuem. Temos a caçadeira para nos defendermos no dia-a-dia do campo, seja de gente ou de animais perigosos. Tanto dá para matar como apenas para fazer barulho e meter medo. Já é uma arma bastante perigosa e espero nunca a ter que apontar a alguém. Mas obviamente que também serve para isso. É a arma para a qual existem mais munições. Tenho em armazém uns milhares de cartuchos, já embuchados e outros ainda por embuchar.
“Agora compreende que o que vi hoje me preocupou bastante. Quando comprei as Glock fi-lo num misto de brincadeira, de oportunidade, mas também sabendo que um dia poderia vir a socorrer-me delas. Pratiquei um crime ao trazê-las para Portugal e ao guardá-las religiosamente ao longo destes anos. Quando viemos para o monte era bom sabê-las à disposição caso fosse vítima do isolamento. Mas as únicas vezes que peguei nelas foi para as limpar e disparar dois ou três tiros com cada uma para assegurar a sua funcionalidade. Mesmo a caçadeira só a usei para caçar de vez em quando.
“Por isso não digas que quero brincar às guerras. O que vi hoje foi muito perturbador. Por isso vou pôr as duas pistolas à vossa disposição e ensinar toda a gente a usá-las com segurança e rigor. Não quero nenhum exército. Quero a segurança de todos nós.
- Concordo contigo. – apoiou Vasco.
- Amanhã vou a Estremoz, à Guarda. Mas vou levar comigo uma das pistolas. Porque vi naquele monte uma violência, uma brutalidade que julgava arredada destas bandas. Quem fez aquilo foi um grupo de selvagens.
- Deixe-me ir consigo. – voluntariou-se Nuno.
- Por, mim... – anuiu Luis.
Um olhar trocado entre os pais autorizou o filho. Os sorrisos trocados nos últimos meses esconderam-se, estranhamente arredados.
(continua)

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