28.11.08

Desertos (X)

(continuação)
9
NOVAS DO CAMINHO

Nos primeiros dias de Março o tempo mudou e rapidamente o frio deu lugar às temperaturas amenas. Algumas chuvas irrigaram os campos e chamaram o calor que ao meio-dia lembrava o Verão. Atarefados andavam todos a cuidar das sementeiras que rebentavam em busca de sol.
No final de um desses dias, quando repousavam no exterior contemplando o pôr-do-sol por detrás do monte mais a Oeste, os dois rafeiros alentejanos ergueram-se simultaneamente de orelhas em pé, olhando estáticos o caminho de acesso, alerta. Marvão ladrou uma única vez, profundamente, como um trovão.
- O que foi, Marvão – perguntou Luis alertado pelo animal. – Vem lá alguém?
O latido foi repetido, também por apenas uma vez, desta feita por Beja. Os cinco levantaram-se e foram para junto dos cães. Focaram o olhar no caminho e aguardaram ver o que os dois animais sentiram muito antes. Passaram alguns minutos até Nuno ser o primeiro a reagir.
- Vejo gente. Um..., dois...
- Também já os vi. – respondeu o pai.
- Três homens, três mulheres e duas crianças. Vêm a pé, excepto uma das crianças que está num carrinho que é empurrado. – Nuno parecia, sem dúvida, aquele que melhor visão tinha.
- Vê-se que vêm carregados e cansados. Coitados, de onde virão? – questionou Luisa.
- Não vejo armas. – comentou Vasco. Quatro pares de olhos viram-se para si. Inês foi a primeira a reagir.
- Que merda é essa? Só pensas em armas?
- Alguém tem que o fazer. Vou buscar a caçadeira.
- Vasco, pára com isso. – interveio a sua mulher.
- O seguro morreu de velho. – resmungou em direcção a casa.
- Luis, não dizes nada?
- Talvez ele tenha razão, Inês. A questão aqui não será de onde esta gente vem, mas quem é e para onde vai. O caminho para este monte não é muito óbvio, e eles viraram para aqui. Se o Vasco consegue reagir e pensar assim..., acho que só temos que aproveitar. Vejamos se reconhecemos alguém. Quem poderia ter fugido da cidade para vir ter connosco aqui?

Tal como meses antes, aguardaram a aproximação dos visitantes, desta feita muito mais lenta porque apeados. Mais uma vez foi Inês a revelar-se a mais perspicaz e a reconhecer o primeiro dos viajantes.
- É o Pedro, Luis, é o Pedro. O primeiro do grupo é o Pedro...
- Pois é, o grande sacana.
Vasco alvitrou:
- Então, com duas crianças, será que vêm ali o Mário e a Rita?
- Tens razão, - confirmou Inês, - é o Mário quem empurra o carrinho.
Pouco a pouco reconheceram todos os elementos do grupo que se aproximava. Todos amigos, conhecidos dos tempos da cidade e da abundância. Das longas tardes na praia, na piscina ou à mesa. Das sardinhadas e passagens de ano. Dos casamentos, baptizados e funerais. Das férias e fins-de-semana, quando o mundo corria pacato ignorando as agruras guardadas no futuro.
Em direcção ao monte caminhavam Mário e Rita, com as suas filhas de dez e oito anos, Sandra e Filipa. Com eles vinham Jorge e Susana. O grupo era encabeçado por Pedro. E também lá vinha a Patrícia. Quando os treze se reuniram a meio caminho, a algazarra foi tremenda. Beijos. Abraços. Apertos de mão. Vivas. Olás. Perguntas sem resposta. Respostas não ouvidas. Sorrisos e risos.
Demorou muito tempo a sentar toda a gente à mesa, repescadas que foram todas as cadeira e bancos disponíveis. A noite caía rápida e era preciso esticar o jantar para quase o triplo dos convivas. Com ar sedento e esfomeado atacaram os vegetais salteados, os queijos e o pão. Beberam e falaram. Falaram e comeram. Comeram e beberam.

Pedro e Luis conheciam-se desde a infância, partilhando a mesma idade. Os seus pais não só foram vizinhos quase toda a vida, como eles partilharam durante 10 anos os bancos da escola, desde a infantil ao nono ano de escolaridade. Pedro sempre foi o melhor aluno da turma. Nunca se preocupou com actividades desportivas até à adolescência, altura em que desenvolveu o gosto por escalada, parapente, orientação e outras actividades com o mesmo espírito de aventura.
Tornou-se aluno do Técnico mas foi acabar o curso em Londres onde iniciou a sua carreira como engenheiro aeroespacial. Começando pela aeronáutica civil recrutado pela Aerobus, onde pouco tempo esteve pois a Lockheed lançou-lhe o desafio irrecusável de integrar a equipa de criação do novo Space Shutle americano. Trabalhava em Portugal, à distância, e fazia pagar caro a sua reconhecida criatividade e competência.
Quando a crise energética estalou o projecto espacial foi dos primeiros a ser enterrado. Pedro arregaçou as mangas e regressou à empresa que primeiro o acolheu. Mas por pouco tempo. A escassez de petróleo condenou a aviação tornando os custos de operação nada razoáveis. Desapareceu o investimento em novas máquinas e a indústria cerrou portas. Pedro ficou definitivamente desempregado e passou a viver da riqueza acumulada e para a qual nunca encontrara tempo para a gastar.

- Contem-nos então o que vos fez caminhar até ao Alentejo?
- Nunca esqueci a tua oferta, Luis... – começou Pedro, - Mas se não a aceitei antes foi apenas por causa do Zé.
- Que é feito dele? Porque não veio? – as perguntas saíram com naturalidade e só depois Luis se apercebeu que as respostas poderiam ser desagradáveis. Pelo canto do olho viu o olhar de reprovação da mulher, cujo arquear de sobrancelhas o alertava para a possibilidade de estar a entrar em terreno pantanoso. Tarde demais. Se fossem areias movediças já Luis estaria pelos joelhos. Acabou por ser Pedro a socorrê-lo, respondendo com naturalidade e revelando não ser o tema indesejado.
- Como sabes ele nunca largou o Parlamento Europeu. Mesmo com a crise e o descalabro dos Estados às mãos da populaça descontente, manteve-se firme acreditando que a União Europeia conseguiria fazer valer o seu peso, a sua dimensão, para alcançar resultados no esforço de recuperação do nosso estilo de vida passado.
“Porém acabou por ficar refém da sua escolha quando acabaram os voos comerciais. Ficou preso em Estrasburgo e nunca mais voltou a Portugal. Já não havia condições de segurança para viajar de carro. Nem ele podia vir cá nem eu ir lá. Foi com dor que deixámos de nos ver.
“Durante um tempo ainda falámos por telefone, mas até as telecomunicações acabaram, e assim ficámos com um mundo entre nós. Ainda combinámos que, quando o Parlamento Europeu fechasse as portas ele tudo faria para voltar.
- Então porque saíste de Lisboa?
- Olha, Inês, porque viver em Lisboa está cada vez mais insuportável e perigoso. E esperar pelo Zé parece cada vez mais uma tortura. E eu não tenho jeito para Penélope. Deixei em casa várias mensagens, mais ou menos cifradas dizendo-lhe para onde vinha. Se um dia, porventura, o Zé regressar pode ser que ainda o vejamos a subir aquele caminho com um sorriso nos lábios.
- Como está Lisboa? – perguntou Vasco.
Houve uma pausa. Pedro não ia responder, pelo que Mário tomou as rédeas do relato.
- Uma bomba-relógio. Uma panela de pressão sem válvula de segurança. Há gente a mais e condições de menos. A gente importante está encurralada na Baixa, rodeada de barreiras militares. Já se fala em evacuação pela Marinha, usando veleiros, para se deslocarem rio acima na direcção de um qualquer Álamo. O certo é que o resto da cidade está entregue às feras.
“Os gangs que associávamos aos grupos da Cova da Moura, da Margem Sul, ou outros arredores generalizaram-se e foram-se fundindo uns aos outros, aumentando os efectivos e o poder. E os critérios de agregação proporcionaram verdadeiros exércitos de intolerância.
- Como assim?
- Vê bem, Luis, em situações de excepção, como as que hoje se vivem, as pessoas tendem a agrupar-se de acordo com algo que tenham em comum. O que primeiro começa por ser a identidade familiar, ou o círculo de amigos, acaba por se ir alargando e concretizar-se em algo mais específico, mais objectivo. Então hoje em dia, em Lisboa, as zonas começam a ser controladas por gangs que se formaram de acordo com a nacionalidade, a etnia, a religião.
“Agora tens o bairro dos Guineenses, dos Russos, dos Alfacinhas, dos Chineses, dos Indianos, dos Nortenhos, dos Ciganos... sei lá. E foi porque em Lisboa o sentido de “bairro” há muito se perdeu nos velhos de Alfama, do Bairro Alto ou da Mouraria, por exemplo. Na Margem Sul o fenómeno é diferente e mais regional. Há o gang de Cacilhas, de Almada, do Seixal, do Barreiro... E cada grupo quer o seu espaço, o seu território, especialmente à medida que aumenta de número, pelo que volta e meia estalam autênticas guerras, sem que haja qualquer autoridade que as impeça. A polícia e o exército não intervêm pelo que quem não pertence a nenhum grupo arrisca-se a ser apanhado pelo meio e a ficar nas suas mãos.
- Como é que escaparam a isso?
Mário fizera uma pausa para encher o copo de água, pelo que Pedro retomou a narrativa.
- Foi no Verão passado que as coisas se agravaram, com o eclodir de confrontos, resquícios ainda de tensões acumuladas com a Grande Batalha, a última vitória governamental sobre a população.
- Quando nós fugimos de Lisboa. – ajudou Luisa.
- Assim que recuperaram, os gangs orquestraram um feroz ataque concertado que confinou as tropas à Baixa e ao Chiado. Em ambiente de verdadeira guerra civil dividiram o território conquistado. Com alguma dificuldade reunimo-nos os oito na casa da Patrícia, ali no Parque das Nações ao pé da Vasco da Gama, porque sabíamos ser o ponto mais próximo da saída da capital.
“Nessa altura já o acesso à comida e bebida estava a ser regulado pelas lideranças dos grupos formados, gente despótica, gananciosa, sem coerência ou justiça. Em Setembro decidimos que tínhamos de partir para aqui, lamentando que não o tivéssemos feito logo após a Grande Batalha, quando tudo estava mais desorganizado e era mais fácil abalar.
- Mas então como é que só agora aqui chegaram?
- Não fomos os únicos a ter a mesma ideia. E na véspera da partida vimos um pequeno grupo ser maltratado no acesso à Vasco da Gama. Sabendo que havia gente a querer fugir uns grupos de sacanóides atacaram essas pessoas, roubaram-nas, mataram-nas, fizeram tudo o que quiseram. Perante o susto que apanhámos ao ver aquilo, planeamos a fuga junto à margem do rio até Vila Franca para aí passar na ponte. Mas aquela ponte foi derrubada e só de barco se consegue atravessar o rio. Logo, os barcos estão na mão de uns “empresários” originais nos quais não confiámos, pelo que não nos metemos com eles, especialmente por causa das miúdas.
“Com as chuvas o Tejo ia largo e Vila Franca de Xira estava parecida com uma cidade de cowboys, pelo que arriscámos seguir até Santarém. Aí já não há luz e a cidade parece uma vila medieval, encerrada junto às muralhas do castelo. Muito pobre, mas relativamente segura. Não havia violência e acabámos por ficar por lá pois entretanto chegara o frio e temíamos não aguentar a viagem até aqui. Só arrancámos há três semanas, quando já podíamos dormir ao relento.
- Desculpa lá, Luis, - começou Rita, - virmos encher o teu refúgio. Isto connosco fica sobrelotado.
- Não te preocupes. Já não conhecemos mais ninguém que venha para cá, a não ser o Zé, se um dia cá chegar. Agora nos primeiros dias arrumamo-nos por aí, depois pensamos em acrescentar a casa.
- Como dizes?
- Sim, Inês. tenho umas ideias e aqui o engenheiro espacial e o empreiteiro são as pessoas adequadas para as desenvolver. Vamos crescer com mais dois ou três quartos. Vão ver.
(continua)

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