24.11.08

Desertos (IV)

(continuação)
3
TRABALHO,
MUITO TRABALHO

Sentados à mesa perante um jantar de beringelas recheadas foram continuando a conversa.
- E agora que cá chegámos, com o que é que podemos contar?
- Trabalho, Vasco, muito trabalho.
- Sim, - riu Inês – Nós convidámo-vos porque precisamos de gente para trabalhar e a mão-de-obra agrícola é cada vez mais difícil de arranjar.
- Agora a sério, - recomeçou Luis – A vida aqui não é fácil. Dependemos do trabalho para comer. Logo, agora que somos mais, precisamos de mais trabalho.
“Há inúmeras coisas para fazer aqui no Monte. Desde limpar a casa e cozinhar a tratar dos animais, das plantas, passando pelas reparações e pela ocasional pesca. Amanhã faço-vos uma visita guiada. E isto inclui-te, Nuno. A escola acabou. É tempo de crescer à força e ser adulto. Vais ter que trabalhar como qualquer um de nós. E o pior... – concluiu rindo -, é que nos arredores não há ninguém da tua idade. Esta é uma zona tramada para conhecer raparigas.
- Como estás de energia? Os teus sistemas funcionam?
- Felizmente. Quando pedi que me desenhassem a casa exigi logo auto-suficiência energética. A edificação está pensada para o melhor desempenho térmico possível. A reduzida perda de energia conseguida garante que o frio e o calor fiquem lá fora, assegurando um ambiente ameno no interior.
“Temos electricidade vinte e quatro horas por dia graças ao gerador eólico e aos painéis solares. Desde que consumida moderadamente nunca faltou. Só a capacidade de armazenagem é que é limitada pelo que esperemos não venham a falhar os sistemas. Contudo, esqueçam longos banhos quentes no Inverno porque não podemos gastar energia para toda a água. Enfim, de Inverno o duche morno parece frio e enrijece corpo e espírito.
- E o que produzem vocês aqui no monte? – interrogou Luísa. As olheiras que pintavam o seu olhar revelavam todo o cansaço acumulado durante a viagem desde Lisboa. Luisa era uma mulher baixa, morena que exibia um par de penetrantes olhos azuis. O seu corpo equilibrava-se num par de pernas muito fininhas, apesar do excesso de peso que suportavam. Quem a conhecera no passado reconhecia facilmente que as carências alimentares e os esforços físicos a que se sujeitara lhe tinham levado quase vinte quilos.
Foi Inês quem lhe respondeu:
- De tudo um pouco. O ideal é fazer pequenas colheitas de diversos produtos para garantir variedade e não correr o risco de uma praga, ou uma alteração climática estragarem um ano de trabalho. Temos horta, cereais, pomar, porcos, abelhas, uma vaca, coelhos, galinhas... pesca-se de vez em quando e trabalha-se para ter tudo em marcha.
- Há pouco falavas do isolamento, Luis. Tens comunicações?
- Não, estamos isolados. Como disse, apanhamos a rádio nacional e nada mais. Tenho uns walkie-talkies para consumo pessoal, até três quilómetros mais ou menos, que muito de vez em quando apanham outras comunicações.
“Mas não falo com quase ninguém. Os montes à volta estão vazios. O mais próximo habitado está para aí a oito ou dez quilómetros, e vive lá um casal de velhos. De vez em quando vou lá ver deles, nada mais. Uma vez por mês passa aí um GNR, a cavalo. Diz olá, leva uns produtos e conta-me as novidades. Não vamos a Estremoz vai para mais de um ano, quando fui levantar as últimas reformas e fazer umas compras e me deparei com os bancos fechados.
- Como arranjam as coisas que não se cultivam ou criam? – pela primeira vez Nuno mostrava-se interventivo.
- Agora já não arranjamos. Temos muita coisa em armazém, na qual íamos aplicando o dinheiro que ganhávamos. Previmos que iria chegar o dia em que ter dinheiro de nada serviria, por isso acumulámos medicamentos, lâmpadas, adubos, sementes, sei lá. Olha!, papel higiénico, até. Mas está a acabar-se. E agora convosco... cedo teremos que pensar numa alternativa.
Riram-se perante as ideias que cada um de imediato teve para resolver essa necessidade, mas por trás desse riso escondiam-se a inquietação e a apreensão sobre um mundo novo que se consolidava sobre as ruínas da vida que durante uma vida deram por assegurada.
- Aprendemos a viver com tudo. – relativizou Luísa.
- Sim, mãe. Quando há três anos acabaram com a net ia ficando doente, Desde sempre a dei como garantida. Cresci na net e ao perdê-la senti um vazio. Como poderia eu comunicar ou chegar ao conhecimento sem essa ferramenta? Como conseguiam vocês crescer sem a net? Foi algo que comecei a aprender com o fim da rede, com o fim das telecomunicações.
- Há mais coisas que se perderam. – interveio Luis. – Conquistas com as quais nascemos e que se sumiram sem que conseguíssemos evitá-lo. Ter a comida e tudo o mais ao alcance de um braço nas prateleiras do supermercado, bastando para tanto um cartão e uma assinatura; a televisão, os jornais, os automóveis, a paz, a segurança...
“Hoje em dia estou aqui e tenho medo sempre que vejo pó na estrada. Será desta que bandidos vêm saquear o monte?, pergunto-me.
- E se fosse só isso... temos medo que não chova... ou chova demasiado. Do calor, do frio, tudo o que implica com a nossa subsistência é uma dor de cabeça.
- Nesse aspecto, as diferenças para a vida da cidade, são menos que as semelhanças. As angústias da insegurança, da falta da comida, do que será o amanhã, são idênticas. Que saudades tenho de ao domingo saber de cor o que ia dizer, segunda-feira. – arrematou Vasco parafraseando Jorge Palma.
(continua)

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