29.11.08

Desertos (XI)

(continuação)
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PATOS-BRAVOS

Conduzia um Mercedes como sempre vira fazer a seu pai. Andava de obra em obra, reunia com clientes, engenheiros, arquitectos e fornecedores. À noite perdia horas com a revisão de orçamentos e alguns aspectos contabilísticos dos quais não abria mão. Os telemóveis que carregava, dois simultaneamente, estavam constantemente a tocar. Os dias tinham menos dez horas do que aquilo que precisava.
Desde que herdara o negócio do pai, depois do fatídico ataque cardíaco que o vitimou ao volante, Mário tornou-se um escravo do stress, um mouro de trabalho. Ainda assim, como empreiteiro, era reconhecido pela sua competência e tinha sempre mais procura pelos seus serviços que aquilo que conseguia oferecer.
Até que a economia estagnou e engrenou a marcha-atrás. As pessoas deixaram de comprar casa, de reparar prédios, de remodelar lojas. Mário despediu toda a gente que para si trabalhava, arrumou a tralha e engrossou a coluna dos desocupados em busca da subsistência do dia-a-dia. A ruína do nome comercial desperdiçou o trabalho acumulado de duas gerações. Mário tornara-se em apenas mais um indivíduo que, por acaso, até percebia de construções.

Logo no dia seguinte Mário, Luis e Pedro dedicaram-se à análise das soluções arquitecturais expansionistas. Nuno e Inês encarregaram-se da visita guiada aos demais recém-chegados e a vida do monte exigiu cuidados que tiveram de ser prestados.
- Então, o que achas da minha ideia? É viável?
- Sim, Luis, sim... O resultado é o adequado e não exige muito esforço. Ainda assim temos que pensar o processo muito bem e planear a forma de levarmos à prática essa construção.

A casa do Monte das Murtas nunca foi grande. Um quase quadrado de dez metros arrumava três pequenos quartos, uma cozinha, uma casa de banho e a sala comum. Cá fora, um alpendre fazia ângulo recto entre Sul e Poente, estendendo a sua protecção três metros para além das paredes exteriores, cobrindo um terço da fachada da frente e toda a do lado esquerdo onde se sentavam usualmente a contemplar o ocaso que ao final da tarde incendiava a planície.
A porta da entrada, abrigada pela extremidade do telheiro da frente, franqueava o acesso directo à sala comum. À sua direita duas janelas arejavam a sala e a cozinha.
A sala era um quadrado de seis metros de lado que tinha ainda duas janelas do lado esquerdo, abertas para ocidente. Segundo o plano de Luis, essas duas janelas seria sacrificadas convertendo-se em novas portas, abertas para o alpendre que daquele lado seria fechado e dividido em dois novos quartos, estreitos, mas garantindo que o aperto seria tolerável. Num deles enfiariam uma cama e um beliche e deitariam ali o Mário e a Rita com as duas filhas. O outro seria mobilado de forma idêntica, entregando-se a cama a Patrícia e pondo Nuno e Pedro a dividir o beliche.
Nos dois pequenos quartos ao fundo da sala, já antigos, e para os quais se entrava por suas portas separadas pela grande lareira, Vasco e Luisa manter-se-iam onde estavam, ao passo que o agora quarto de Nuno arrumaria Susana e Jorge. Luis e Inês continuariam a ocupar o quarto grande, no canto Nordeste da casa.
Contudo, até conseguirem concluir toda esta obra, teriam literalmente que acampar em todos os pequenos espaços disponíveis. Tinham pela frente muito trabalho, como o demonstrou Mário assim que fez as medições e começou a enumerar o material que necessitaria. Impossibilitados que estavam de telefonar a pedir cimento areia e tijolos tiveram que recuar no tempo e desenterrar as técnicas de construção em adobe, das quais Mário apenas tinha umas luzes. Porém, Pedro era visitante assíduo de Marrocos e adepto curioso da arquitectura segundo essa técnica de construção ancestral usada amiúde naquele país africano. Assim, dominava os princípios básicos da construção e o seu espírito engenhoso resolvia as dificuldades logo que estas eram pensadas ou detectadas. Aproveitava sempre para ir dizendo que não esperassem milagres. A construção não seria rápida, e passaria a exigir cuidados permanentes para manter a solidez das paredes
Passaram horas a planear onde iriam encontrar a pedra, a lama, a palha, a madeira, a telha. Uma casa abandonada, que não a antiga habitação de Ti’ Francisca e Ti’ Zé, a qual pretendiam evitar, iria fornecer parte desse material. Aparelhando o boi à carroça lá iriam respigar umas portas, camas, telhas e madeiras e tudo o mais que fora arrolado durante o planeamento e pudesse ser recuperado sem danos.
Lá fora a chuva caía, forte e consistente, esgotando-se naquele domingo para durante as semanas seguintes dar as tréguas necessárias a tamanho empreendimento.

A vida continuou numa azáfama comunitária que exigia não só trabalho, mas também organização de formiga.
Eram agora treze as pessoas que tinham de ser alimentadas. Proporcionalmente às necessidades, também a mão-de-obra aumentou. Depois de duas semanas de fervorosa construção lá arrumaram novas camas nas divisões húmidas que o calor dos dias cada vez maiores de Março ajudava a secar rapidamente.
Puderam então reorganizar as tarefas agrícolas e pecuárias, maximizando o aproveitamento daquilo que a natureza lhes proporcionava a troco de cuidada atenção.
E, sem se aperceberem, rapidamente chegaram a Agosto.
(continua)

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