19.11.08

Desertos (III)

(continuação)
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NOVOS HÁBITOS

Oito anos atrás, Luis e Inês leram os sinais, fizeram futurologia e decidiram mudar de vida. Sem filhos foi mais fácil assumir o risco. Em bom tempo o fizeram.
Os primeiros sinais de alarme vieram do Médio Oriente quando os estados do Golfo deixaram de conseguir esconder que os poços estavam a secar. Durante anos tinham chocado o mundo com acordos de redução da produção do petróleo, inflacionando o preço do barril para lá da incrível barreira dos cento e cinquenta dólares por barril. Foram apelidados de especuladores, de exploradores dos outros países dependentes do combustível fóssil. Porém, a espionagem industrial, a investigação jornalística e as oposições expectantes chegaram ao bem guardado segredo e expuseram-no. Vinte anos antes do previsto fechava-se a torneira do ouro negro. Dependentes dessa fonte de riqueza os países produtores, em particular os do Golfo, começaram a ruir sob o punho de massas revolucionárias.
As repercussões mundiais não foram imediatas. Nos países menos desenvolvidos o choque foi atenuado pela fraca dependência energética. Nos países ditos mais ricos, os recentes investimentos na energia nuclear davam frutos e alimentavam a esperança. Foram anunciados programas massivos de alteração dos motores de combustão interna pelos limpos e ecológicos eléctricos, o que animou a economia. Sujeitando-se a racionamentos cautelosos e com algumas alterações a hábitos consolidados conseguiram continuar a sua vida autista.
Foi por esta altura que Luis e Inês abandonaram Lisboa. Ele acabara de passar à reserva, militar da Armada que foi. Com quarenta anos deixou de estar embarcado, pois reduzida era a capacidade financeira para manter a navegar navios sedentos por diesel. Pouco tempo o quiseram no Arsenal, logo o mandando para casa, com o ordenado por inteiro e zero de actividade.
Por sua vez, Inês progredira muito rapidamente na empresa estrangeira instalada no mercado português que a acolhera logo à saída do curso. Com 33 anos ascendeu a vice-directora para os recursos humanos. Um ano mais tarde a empresa fechou portas a todas as iniciativas além-fronteiras. O acordo de despedimento por extinção do posto de trabalho foi generoso. O mealheiro aumentou, dando o empurrão que faltava.
Venderam o apartamento onde viviam e mudaram-se para o Alentejo, para a casa recém-construída sobre as ruínas do antigo Monte das Murtas. Foi assim que se mudaram para um monte alentejano, virando costas à cidade.
Com o passar do tempo a vida em Lisboa começou a revelar o grau de dependência do petróleo a que chegara. O aumento generalizado dos combustíveis elevou a inflação sem contemplações perante a incapacidade de todos os sectores mudarem a sua fonte de energia. Era assim em toda a União Europeia. E nem Bruxelas conseguia ajudar a Lusitânia.
As pequenas empresas começaram a fechar. O desemprego e a instabilidade social associada subiram em proporção geométrica. Os géneros alimentícios começaram a faltar, pois que transportá-los para a cidade era muito caro. Cultivá-los, produzi-los já por si era muito caro. A fome espreitou e entrou sem pedir licença. Com ela veio a violência.
Da parte do Governo foram adoptadas medidas impopulares mas que conseguiram a almejada contenção de danos. A ruína do Estado moderno foi adiada.
Toda a energia foi canalizada para quatro pontos apenas: Grande Lisboa, Grande Porto, Aveiro e Coimbra. Todo o resto do país ficou às escuras, parado, sem luz, calor ou meios de transporte. Electricidade, gás, gasolina, gasóleo passaram a ser exclusivos daquelas cidades. Logo nasceu o mercado negro da energia sem, contudo, chegar a prosperar por não haver quem sustentasse o negócio.
As estradas encheram-se de caminhantes em direcção às cidades, esperando aí encontrar a vida perdida no passado. Pelo contrário, iam ao encontro da fome, do Exército e da polícia em acção repressiva tentando conter a multidão descontente.
Havia 3 anos que Luis e Inês tinham abandonado Lisboa quando, durante o Verão, e perante uma assustadora vaga de calor, a população enfraquecida quebrou e começou a morrer. Juntamente com o calor e a fome um surto de ébola irrompeu na Europa do Sul empurrado de África. Os estados debilitados lutaram como puderam. A Europa Central e do Norte contribuiu generosamente com meios de combate à doença que queriam longe dos seus países. Durante seis semanas de renhidos combates clínicos sem tréguas acumularam-se os mortos. Contido o surto restou uma desoladora paisagem, particularmente nas cidades que viram um terço da sua excessiva população perecer exangue.
Enquanto a Sul se combatia a doença um coincidente evento em França e nos Estados Unidos mergulhava em horror e desespero os optimistas do resto do mundo. Com um intervalo inferior a quarenta e oito horas, dois dos reactores nucleares da última geração, ditos infalíveis e indestrutíveis, seguros, entraram em fissão descontrolada e repetiram Chernobyl, como um dia os responsáveis disseram não ser possível.
Outros alertas mostraram evidentes falhas de segurança. Uma a uma as centrais nucleares foram fechando as suas portas. O caos energético entrou com um grande estoiro nos países mais ricos que até ali tinham brincado aos poderosos que lançam uma mão em ajuda dos necessitados. Agora que também estavam em maus lençóis ninguém mais os podia ajudar.
Logo nesse Inverno, em Janeiro, uma vaga de frio apanhou as gentes desprevenidas. Sem electricidade nem gás os aquecedores de nada serviam. Os mais frágeis renderam-se. Ao fim de quatro anos de provações, tinha desaparecido um terço da população portuguesa. Alguns países tiveram mais sorte. Outros nem por isso.
Nesse ano a União Europeia desenvolveu o programa de emergência das barras energéticas. Inicialmente concebidas como suplementos alimentares rapidamente se tornaram no único alimento disponível nas grandes cidades, para além dos poucos vegetais que conseguiam ser cultivados em pequenos quintais, terraços, canteiros e vasos
Foi graças à produção massificada destas barras que os governos conseguiram, finalmente, um trunfo para se justificarem e restabelecerem padrões de vida numa nova sociedade que emergia ao fim de quatro anos de novos hábitos.

(continua)

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