19.11.08

Desertos (II)

(continuação)
Pouco depois repartiam-se pelos sofás da sala, copos de água cheios, pão, queijo e fruta ao alcance da mão. Os risos, os suspiros, os ais e uis de quem muito pedalou perderam-se em minutos de bem-estar. O silêncio que tomou lugar foi interrompido pelo início da conversa que sabiam inevitável.
- Há quanto tempo estão na estrada?
- Três dias, Luis. Três dias.
- Como é que aquilo está? Piorou assim tanto? O que foi que vos convenceu?
- Continuam sem notícias? – a pergunta de Vasco fugiu à resposta.
- Aqui pouco chega. Só a rádio nacional emite até ao Alentejo. E já não consigo ouvi-la tamanha a desinformação.
- Lisboa está entregue aos bichos. Entre bandidos, polícia e exército já pouco espaço há para o cidadão comum. Contudo, todos os dias chega mais gente à capital.
- Porque é que finalmente vieram? – Inês insistia na pergunta.
- Há mais de seis meses que lamentávamos não ter vindo na última oportunidade. Tivemos um carro preparado, com gasolina e tudo. Mas deitámos tudo por terra. Por estupidez.
- O Vasco não se perdoa. – atalhou Luísa – Mas não quis deixar tudo para trás, quis vender a casa, juntar o dinheiro, salvar o mais possível. Já era tarde.
- Talvez ainda não fosse. Mas logo no dia seguinte alguém “adivinhou” os nossos planos e quatro miúdos armados entraram na garagem e levaram o carro. Senti que perdera o momento. Senti-me estúpido.
- Pior foi que, duas semanas depois, os bancos fecharam portas. Foi uma atitude concertada. De um momento para o outro o dinheiro desapareceu. Nesse mesmo dia teríamos arrancado, não nos faltasse uma terceira bicicleta.
Inês e Luis ouviam em silêncio a pausada descrição do casal amigo. Revezando-se, Vasco e Luísa continuaram sem rodeios ou interrupções, contando a uma voz a história vivida na pele.
- Encontrei a terceira bicicleta numa altura em que já vigorava o recolher obrigatório nocturno. De dia as barreiras do exército e dos bandidos castraram-nos a iniciativa. Até ao dia da Grande Batalha.
- Grande Batalha?
- Fartas do espírito securitário, as multidões crescentes dos subúrbios planearam uma marcha sobre Lisboa. Avizinhando-se o confronto, o exército concentrou as defesas ao longo da primeira circular, a Circular das Colinas. Confiantes que esta seria uma oportunidade a não perder, planeámos a fuga. Não só queríamos chegar aqui, e inteiros, como queríamos assegurar-nos de que não traríamos atrás de nós qualquer perigo para vocês.
- A meio da tarde os suburbanos passaram pela nossa casa. Quando o rumor esmoreceu, arrancámos lentamente. Tentámos passar despercebidos até alcançarmos a linha-férrea do Norte, apesar de seguirmos exactamente em sentido contrário ao da corrente.
- Queríamos fugir às estradas...
- E conseguimo-lo. Empurrando as bicicletas e caminhando pelas pedras da via ferroviária durante toda a noite. Ao longe os incêndios de Lisboa iluminavam o céu. Não fazemos ideia do resultado da Grande Batalha.
- No rádio, há dois dias, falaram em ataques concertados de delinquentes que obrigaram o exército a abrir fogo. O Governo reivindicou mais de cinquenta delinquentes abatidos. – informou Luis – A ver por exemplos do passado, o verdadeiro resultado terá sido um banho de sangue sem precedentes.
- Era madrugada quando passámos a ponte em Vila Franca de Xira. Fizemos ainda oitenta quilómetros nesse dia e acabámos a dormir ao relento, sempre com medo de salteadores. – continuou Vasco.
- Só no dia seguinte nos sentimos mais seguros. Desde Vila Franca de Xira que não vemos vivalma. Ainda assim demos uma volta monstruosa para termos a certeza de não estar a ser seguidos. Hoje em dia todo o cuidado é pouco.
- Como estão agora os abastecimentos em Lisboa?
- Olha, Luis, cada vez mais gente só pode dar numa coisa: há cada vez menos de tudo, - respondeu Vasco – pelo que estou farto de comer barras energéticas que é só o que o Governo põe à venda e distribui.
- Sim, porque cada vez se vêem menos, tanto mais que não há dinheiro e é difícil contentarmo-nos com as senhas de racionamento.
- Por outro lado a electricidade já só é ligada entre as oito e as nove e meia da noite. E está sempre a cair. Telefones e gasolina só para o compadrio politico-governamental. A água na torneira é pouca mas ainda chega. Gás é coisa que já não existe.
- Mas a fome faz chegar a Lisboa muita gente, na esperança de arranjar comida. Nada mais. Quem chega só tem que encontrar uma casa vazia e entrar.
- As pessoas nada sabem fazer para sobreviver. Por isso fogem do campo para a cidade, onde qualquer um pode tentar safar-se no cada vez mais diversificado mercado negro. - concluiu Vasco.
(continua)

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