25.11.08

Desertos (VI)

(continuação)

5
DOMINGO

Vasco acordou e logo que abriu os olhos estranhou a cama e o tecto que o cobria. Olhou pela janela aberta de par em par e a rede mosquiteira que a cobria contribuiu decisivamente para relembrar o local onde estava. O calor fazia-o suar. Ouviu barulho ao longe no qual reconheceu as vozes de Luis e Inês. A seu lado Luísa dormia profundamente, apesar do suor que igualmente empapava a sua camisola.
Quando se ergueu lançou-se para o chuveiro, que atingiu sem se cruzar com alguém, onde a água fria o salvou do incómodo calor. Vasco era alto e muito magro. Com um metro e oitenta pesava menos de setenta quilos. Sempre foi assim, seco, como a corda tensa de um arco. Tinha mãos finas, com dedos muito compridos, e movia-se com a ligeireza de um gato, silenciosamente, como se o espaço se abrisse à sua frente para o deixar passar logo se fechando nas suas costas.
Visivelmente mal disposto procurou os donos da casa que ouvia na cozinha. O relógio marcava 09h 10m.
- Bom-dia.
- Bom-dia, dorminhoco. – responderam em uníssono.
- Já estão levantados há muito?
Luis consultou o relógio.
- Há mais de três horas.
Foi a vez de Vasco conferir os ponteiros.
- Mas... caíram da cama?
- Não, Vasco. Aqui há que aproveitar o nascer do sol. E nestes dias de Verão fazer o mais possível antes do calor apertar e nos cozer.
- Podiam ter-nos acordado, para podermos ajudar.
- Deixa estar. Vão ter muito tempo para trabalhar. Hoje é dia de descanso.
- Além do mais, - completou Inês, - Tivemos ajuda. – Com o olhar apontou para a janela. Vasco ergueu os olhos e focou a vista para o exterior luminoso. Nuno estava em pé ao sol, com o casal de rafeiros alentejanos a brincar junto a si. Contemplava o horizonte e notava-se na sua roupa o suor e a sujidade da actividade que já desenvolvera até àquela hora.
- O Nuno?
- Qual é o espanto?
- Bem, Inês, não me recordo de ver o Nuno alguma vez acordar antes de mim, quanto mais fazê-lo para trabalhar.
- Estranhou a cama, a casa. E depois, para ele a pedalada que fizeram foi um exercício menos extraordinário. O seu corpo precisa de actividade da mesma forma que precisa de descanso, e logo que nos ouviu apareceu. Deu uma ajuda a alimentar os animais.
- E que posso eu fazer para ajudar?
- Tu? Nada.
- Nada?!
- Nada! – riram os donos da casa. Inês explicou – Hoje é domingo. Ao domingo não se trabalha. Dá-se comida aos animais e já chega.
- Vocês respeitam o descanso domingueiro?
- Quando para cá viemos este monte não só era a nossa casa como o nosso trabalho. E os dois confundiram-se, entrelaçaram-se como um novelo de fio nas patas de um gato.
- A certa altura – continuou Luis, - reparámos que tudo o que fazíamos era trabalho. Não tínhamos períodos de lazer, não líamos um livro, ouvíamos um disco ou sequer brincávamos um com o outro. Os dias sucediam-se em rotina, sem marcadores temporais e apenas preenchidos pelo trabalho que manter o monte exigia.
- Foi então que ressuscitámos o domingo. Pegámos no calendário e dissemos “ao domingo não se trabalha, repousa-se”. Hoje é domingo.
- Bom, sendo assim o melhor é aproveitar. Amanhã já quero contribuir.
- E assim farás. Mas agora acompanha-nos no pequeno-almoço. Enquanto o preparamos vai dizer ao Nuno para tomar um duche. Depois faremos uma visita guiada.

O ritmo diário de Luis e Inês era definido pela natureza, pelas plantações, pelos animais. Normalmente acordavam com o nascer do sol, ganhando tempo de descanso nas noites de Inverno, perdendo-o agora que estavam cada vez mais curtas à medida que o calor caminhava para o Verão. Comiam então qualquer coisa leve e rápida e iam tratar dos animais. Alimentá-los. limpar-lhes o cativeiro, deixá-los sair, ordenhar a vaca e as ovelhas, recolher os ovos.
Regressavam a casa e então comiam novamente, desta feita um substancial pequeno-almoço, com o leite ainda morno que tinham recolhido e ovos frescos.
Depois separavam-se. Um ia para a horta, ou para o pomar, ou para a seara, cuidando do que fosse necessário, consoante a época do ano. Outro cuidava da casa, mantendo-a limpa e arrumada, fazia queijo, preparava alimentos, colhia frutos, certamente havia tarefas para todos os gostos e os dias pareciam sempre pequenos para as completar.
Assim que o calor fugia, era à noite que acendiam o forno de lenha aproveitando para aquecer a casa enquanto faziam pão para os dias seguintes.
Ao domingo, porém, entregavam-se ao descanso.


Logo que saiu da protecção da casa, defendida por providenciais redes mosquiteiras, Vasco sentiu-se violado por dezenas de moscas que, indiferentes aos seus movimentos e sacudidelas vinham poisar-lhe no corpo e lamber o suor que lhe dava brilho. Incomodado, tentou ignorá-las, mas as moscas zuniam à sua volta como explorando um novo pitéu. Olhando para Luis reparou que os estúpidos insectos se limitavam a voar à sua volta sem contudo nele tocarem.
- Como raio fazes isso?
- O quê?
- Com que as moscas não poisem em ti.
- Com o tempo. Vais ver que a natureza é milagrosa e dentro de algum tempo terás este dom. – riu. – Quando vim para cá viver também me sentia devorado pelas moscas. Mas depois de muito me agitara, incomodar, e ser mordido deixei de ser atractivo para elas. Hoje em dia voam à minha volta e aprendi a ignorá-las, ao seu zumbido horrível.
Foi um período de adaptação complicado para Luis. A sua pele queimada do sol, seca do sal, não estava habituada às moscas que teimavam aterrar na cabeça careca. A vida exigente do monte roubou-lhe a obesidade ganha em anos de cerveja da marinha, da qual apenas guardou uma pequena proeminência abdominal.
Enquanto agitava a mão à volta da cabeça, Vasco inquiriu esperançado:
- E isso durou muito tempo?
- Os dois primeiros Verões. – a gargalhada de Luis foi uma espada de desalento no recém-chegado.
Ainda o sol ia a meio da sua ascensão e já o termómetro roçava os trinta graus centígrados, quando Luis e Vasco iniciaram um passeio pela propriedade. Pouco tinham andado quando apareceu Nuno, correndo ligeiro.
- Posso ir convosco?
- Naturalmente.
Não muito longe da casa estava a linha da margem da albufeira. Luis foi explicando, recordando a Vasco algumas coisas que em tempos lhe contara e revelando a Nuno a história daqueles terrenos.
- O monte era dos meus avós maternos. Lembro-me de, em pequeno, vir para cá nas férias grandes e viver o campo com um desmesurado entusiasmo, entre animais e a rédea solta que a vida no campo me concedia.
“Nessa altura, se quisesse um banho refrescante tinha que andar bastante, até um vale ali para Norte. – disse apontando um ponto indefinido na massa de água que se estendia à sua frente. – Quando falo em vale vocês percebem... nada de fundo, apenas um espaço longe, entre dois montes.
“Depois veio esta barragem. O meu avô tinha morrido e tentámos aproveitar a ocasião para levar a minha avó para Lisboa. Mas ela não quis ir para a cidade. Ficou aqui até morrer, sozinha. Com a construção da Barragem dos Cardeais expropriaram uma parte do monte. Ficámos com menos terra mas com a água da albufeira à beira da casa. A maquia que pagaram não foi gasta a não ser para ir pagando a um casal que cá vinha cuidar das terras e dos animais e tratar da velhota.
“Foram eles quem a encontrou, um dia, na cadeira de baloiço. Teve um fim santo, pacífico, aos oitenta e quatro anos.
- E então herdaste o monte.
- Bem como o dinheiro da expropriação, com o qual fiz as obras trazendo esta casa ao século XXI, aliás, trouxe o século XXI a esta casa.
- Como assim? – inquiriu Nuno.
- Um amigo nosso, de quem nada sabemos há alguns anos, foi quem redesenhou o monte tal como ele está agora.
- Também nunca mais soubeste do Rafael?
- Nada.
- O que lhe aconteceu? – a pergunta de Nuno, curiosa, entrava no passado que não lhe pertencia.
- O Rafael queria à força fazer uma viagem à Terra do Fogo. Era o seu sonho. Assim, um dia depois do divórcio, emalou as câmaras fotográficas e os livros de esquissos e partiu. Estava por lá quando o choque energético pôs fim aos voos entre a Europa e a América do Sul. E, simultaneamente, ocorreram graves e sangrentos levantamentos populares para aquelas bandas.
- Nunca mais ouvimos falar dele. – completou Luis.
- Ainda deve estar por lá.
- Esperemos sinceramente que sim. Era sinal de que ainda estava vivo.
“Mas, dizia eu, o Rafael, que era arquitecto, recriou todo o monte. Reconstruímos a casa e dotámo-la de auto-suficiência energética. Aproveitando generosos incentivos fiscais instalámos um gerador eólico e painéis solares para a electricidade. Reconstruímos o velho moinho que tira a água do poço para um reservatório.
“A casa foi refeita num misto de materiais tradicionais e novas tecnologias. Como tal, conserva a temperatura amena, afastando o frio no Inverno e o calor no Verão. A água é gerida com equipamentos reguladores que evitam o desperdício, controlando a pressão e o débito. Já agora, não se admirem da água parar no duche a cada dois minutos. É um temporizador de aviso que ajuda cada um a lembrar-se que estamos a gastar água há dois minutos. Basta fechar a torneira, esperar uns segundos e abri-la novamente para voltar a ter água.
-E eu que pensava que a vossa bomba não regulava bem... – sorriu Nuno. – E quanto à casa, aumentaram-na?
- Não, quer dizer... só um bocadinho, para melhor distribuir o espaço.
Enquanto a conversa corria, caminharam ao longo da margem e rumaram em direcção a um pavilhão em forma de meia cana deitada, lembrando hangares em campos de aviação. O cheiro que se sentia não deixava margem para enganos: ali estavam os animais.
-Pois hoje de manhã, Vasco, o teu filho esteve aqui connosco e já aprendeu parte do ofício: dar de comer aos animais. Hoje em dia o barracão, que é como chamamos a esta estrutura, serve essencialmente de abrigo para os animais, de celeiro e de arrecadação.
Entraram. Ao contrário do que seria de esperar pela vista do exterior, por dentro o barracão não era um espaço amplo e contínuo. Paredes delimitavam transversalmente o comprimento da construção dividindo-a em compartimentos que comunicavam entre si por uma única porta larga. Percorrendo-os de porta em porta passaram pelo galinheiro, pela pocilga, pelo redil com uma dúzia de ovelhas, e finalmente o curral onde se encontravam confinados uma vaca e um boi. Seguiu-se um espaço de forragem e a última divisão albergava alfaias agrícolas e uma enorme diversidade de caixas, sacas e embrulhos de conteúdo reservado. Luis foi explicando.
- As galinhas e os porcos são os mais resistentes. Aguentam-se bem e quando o tempo está mais ameno até os soltamos. Tentei criar coelhos, mas assim que o calor apertava morriam com uma doença qualquer, pelo que acabei por desistir. Às vezes apanhamos um coelhito selvagem e lá temos petisco.
“Também tivemos cabras. Mas uma pestilência generalizada obrigou-me a matar todas. Não arrisquei de novo, ficando-me pelas ovelhas das quais se aproveita o leite, a lã e, por fim, a carne.
“Temos ainda a vaca e o boi. Não são compatíveis pelo que não nos deixarão descendência, o que é um problema. Aproveitamos o leite, que é muito. Acabamos por deitá-lo fora porque é impossível consumir tudo o que uma vaca dá. Convosco sempre irá haver um acréscimo do consumo, mas mesmo assim teremos produção excedentária.
- Parece os tempos de União Europeia. Se continuas a exceder as quotas ainda pagas multa. – gargalhou Vasco.
- Mas com o leite fazemos queijo, iogurte... ou antes, kefir, porque já perdemos as bactérias lácteas. Ou seja, fazíamos os iogurtes a partir de outros. Mas um dia estragou-se a produção e já não havia lojas onde comprar iogurtes para os substituir. Valha-nos o kefir, que parece indestrutível.
“O boi só tem utilidade para puxar as alfaias e carregar cargas pesadas. É mesmo uma besta de carga. A forragem que temos aqui é apenas a de consumo para os dias mais próximos, pois fazemos a silagem ali naquele edifício branco. – apontou pela porta para uma estrutura de madeira e pedra que se erguia a uns cinquenta metros.
- O meu pai disse-me que o Luis era marinheiro. Como aprendeu a cuidar dos animais?
- Boa pergunta. No fundo sou um autodidacta. As regras básica aprendi-as com os meus avós e a sua sabedoria empírica de uma vida no campo. Mas quando decidimos vir para cá, açambarquei dezenas de livros técnicos de criação, veterinária, agricultura, silvicultura, tudo..., tudo aquilo a que consegui deitar a mão. Inclusivamente fiz download de muitas coisas que gravei em vários DVDs. Toneladas de informação virtual que naqueles belos tempos estavam ali, ao alcance de uns cliques. Tenho saudades do tempo em que quando tínhamos uma dúvida bastava ir ao Google.
- E leste tudo? – questionou Vasco.
- Nem pensar. Já li muito, mas ainda vou à procura de muita coisa, estudo e aprendo bastante.
- Visto que se me acabou a escola, o melhor é eu também me dedicar ao estudo de tudo isso.
- Por favor, Nuno, faz isso. Será sempre bom para ti, mas também para nós. Deve sempre haver mais gente a dominar a tecnologia da qual dependemos.
- Esse foi um dos nossos problemas. Chegámos a um ponto em que ninguém sabia produzir aquilo que nos habituámos a ter desde a nascença. Só consumíamos. E quando deixámos de poder ir às compras quedámo-nos inertes. Muita gente assim ficou.
- Dou-vos um exemplo disso. Sabão. Precisamos de sabão para nos lavarmos, para a roupa, para a casa. Graças a uma enciclopédia que tinha para aí e a uma “googlada” que gravei nos idos tempos da internet, passámos a fazer sabão. Não é a mesma coisa, mas serve. Ainda fui a tempo de açambarcar soda cáustica suficiente para um longo período. Depois... depois tentarei fabricá-la. Já vi que o processo implica electrólise, mas não percebi muito bem como. Na altura certa irei estudar melhor a questão.
- Recordo ter uma vez ouvido dizer que antigamente se lavava a roupa com cinza. – disse Vasco.
- E antes disso só com água. E cheirávamos mal porque se desconheciam os milagres do sabão e do perfume. Esperemos que a humanidade não recue tanto.
Enquanto prosseguia a conversa sobre o destino do suor da humanidade, continuaram a caminhar. Passaram pela horta onde cresciam tomates, couves beringelas e outros vegetais. Estruturas de canas e ramagens protegiam as plantas da inclemência do sol mais quente. A proximidade à água da barragem matava-lhes a sede. Adiante um largo espaço restava, preparado mas aparentemente incultivado. Era o pousio.
Seguindo novamente pela margem deixaram a horta para trás em direcção a uma vintena de oliveiras, de ar robusto mas não velho. Virando as costas à albufeira percorreram um estreito caminho pedonal gravado na encosta que começaram a subir. Do alto do monte viram então a seara, loura, estendendo-se num rectângulo parecido com um campo de futebol. Mais para a direita uma área semelhante acoitava a vinha. As suas fronteiras rectilíneas demarcavam aqueles espaços do pasto que cresceria em redor quando o calor abrandasse e as primeiras chuvas caíssem. Aqui e ali sombreavam alguns sobreiros. Numa dessas sombras se sentaram. Era domingo. Importava descansar e aproveitar a conversa. Uma brisa quase imperceptível agitava suavemente o mar dourado.
Uma hora volvida Inês e Luisa juntaram-se-lhes, finda a sua versão da apresentação do Monte das Murtas. Discutiram o que iriam almoçar e sortearam Nuno e Luis para o fazer. A contra gosto desceram enquanto os outros riam da sua desgraça, e se entregaram ao prazer da inactividade, entre o som das cigarras e o sacudir das moscas.
(continua)

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