(continuação)
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DORES NAS COSTAS
Estava de licença quando tudo aconteceu. Deitou-se no sofá a ver um jogo de futebol e ali ficou, em calmo estupor apreciando as fintas e os remates de conceituados e inspirados artistas da bola. Quando o árbitro apitou três vezes e os jogadores trocaram cumprimentos e camisolas a caminho do balneário, Luis experimentou o primeiro sinal de alerta. Ao regressar à posição de sentado uma dor aguda cravou-se-lhe nas costas.
Algo alarmado respirou fundo e tentou levantar-se. A dor decuplicou, explodiu no cérebro e percorreu o corpo até às pernas. Estas fraquejaram, cederam e deixaram-no cair desamparado no sofá. Gritou assim que recuperou a respiração arfante. Descontrolado tentou racionalizar o que consigo se passava.
Lentamente tentou mover as pernas para de novo se erguer. Ao dobrar os joelhos para fora do sofá onde jazia estendido uma nova facada se fez sentir na zona lombar. Desta vez o grito arrastou lágrimas a que se seguiu a imobilidade própria de quem está atemorizado perante um cenário de dor.
Com a lentidão de quem manobra numa apertada loja de cristais começou a analisar as queixas do seu corpo. Rapidamente percebeu que qualquer movimento das pernas tinha como consequência uma insuportável tortura. Já raiando o pânico procurou o telemóvel para pedir socorro. Virou a cabeça e com o olhar o buscou junto do comando da televisão, onde usualmente o pousava, para aí encontrar o vazio. Quis recordar onde deixara o aparelho mas a dor turvou-lhe o raciocínio. Urrou. Praguejou. Arfou.
Por momentos, breves momentos, correram pela sua mente ideias de paralisia, cadeiras de rodas, camas de hospital, dependência de terceiros. Em desespero lembrou-se de ter atendido uma chamada na cozinha antes do jogo, enquanto abria uma cerveja, e pousado o telemóvel na bancada. Tinha que lá chegar.
Buscou concentração, interiorizando o esforço que lhe era exigido. Concebeu mentalmente o trajecto. Testou os movimentos. Então, com muito cuidado, rebolou para o chão. A deslocação fê-lo explodir de raiva, gritando a dor aguda. Quedou-se procurando normalizar a respiração.
Lentamente, usando apenas a força dos braços, arrastou-se até à cozinha. Percebeu que evitando alguns movimentos poupava-se à dor. E assim, rastejando, telefonou a Inês, deixando-se ficar no chão da cozinha, de peito para o ar, enquanto aguardava por socorro. Quis chorar a impotência que o afogava, mas as lágrimas recusaram partilhar o momento e guardaram-se para outras ocasiões.
No hospital confirmaram o diagnóstico que se adivinhava. Tinha feito uma hérnia discal. Nada recomendava a cirurgia pelo que tinha que se habituar à ideia de viver com ela. Entretanto encharcá-lo-iam de analgésicos e relaxantes musculares e recomendavam vivamente que começasse uma dieta para tirar algum peso da coluna.
Logo que pôde foi consultar o seu médico e amigo de longa data. Este riu-se, confirmando o rigor do diagnóstico e dos conselhos e repetiu:
- Olha, Luis, eu tenho 2 hérnias discais, uma com vinte anos e outra com quatro. E vivo com elas. Tens que ter mais cuidado, em especial com os esforços brutos, fazer exercício adequado, especialmente natação, ter cuidado com a postura e emagrecer uns quilos, tudo para aliviar o teu esqueleto sobrecarregado.
Quando terminou a baixa não voltou a embarcar. A Armada começava a enfrentar a necessidade de reduzir custos e navegava o menos possível para não desperdiçar o cada vez mais caro combustível. Mantiveram-no no Alfeite por um ano, ocupado a nada fazer, até que o passaram à reserva. O sonho de muitos foi por Luis realizado sem que sequer pensasse nisso: ia para casa, sem trabalhar, e receberia o seu ordenado todos os fins de mês.
Nesse ano, entre uma nova dieta e o ginásio, perdeu vinte quilos. Escondeu na memória a lembrança do susto e do sofrimento passado.
Passados nove anos ainda sentia as queixas da sua maleita. Porém, com os cuidados que seguia, ainda conseguia aguentar com o esforço de ser agricultor. Tudo isto lhe passou pela cabeça enquanto, sozinho, arrastava os cadeirões para uma nova posição, mais adequada. Seria tão mais fácil pedir ajuda e fazê-lo a dois, mas a teimosia era uma das suas características. Teimosia e orgulho da sua autonomia, independência, de conseguir fazer sozinho o seu trabalho.
Apesar de ter estado anos na Marinha, inserido numa hierarquia, Luis não se considerava um jogador de equipa. Normalmente preferia trabalhar sozinho, fixar os seus objectivos e atingi-los por si, não estar dependente de outros para apregoar o seu sucesso, nem ter em quem culpar pelos seus fracassos.
Naquele monte funcionava a única equipa na qual alguma vez estivera bem inserido: a família a dois que constituíra com Inês. Mas isso apenas acontecia porque ela era, tal como ele, uma pessoa que gostava de estar no controlo da acção, no domínio do resultado. As suas carreiras revelaram isso mesmo, pois ambos assumiram papéis de chefia, ainda que em planos muito diferentes.
Ali, a dois, repartiam as tarefas de forma a cada um cumprir a sua, e raramente as dividiam para serem cumpridas a dois. Autonomamente trabalhavam o trabalho que o monte pedia. Um lavrava, o outro cuidava dos animais; um colhia enquanto o outro limpava a casa; um cozinhava enquanto o outro podava. E assim se afastavam durante o dia prezando os momentos que, mais tarde, tinham juntos.
DORES NAS COSTAS
Estava de licença quando tudo aconteceu. Deitou-se no sofá a ver um jogo de futebol e ali ficou, em calmo estupor apreciando as fintas e os remates de conceituados e inspirados artistas da bola. Quando o árbitro apitou três vezes e os jogadores trocaram cumprimentos e camisolas a caminho do balneário, Luis experimentou o primeiro sinal de alerta. Ao regressar à posição de sentado uma dor aguda cravou-se-lhe nas costas.
Algo alarmado respirou fundo e tentou levantar-se. A dor decuplicou, explodiu no cérebro e percorreu o corpo até às pernas. Estas fraquejaram, cederam e deixaram-no cair desamparado no sofá. Gritou assim que recuperou a respiração arfante. Descontrolado tentou racionalizar o que consigo se passava.
Lentamente tentou mover as pernas para de novo se erguer. Ao dobrar os joelhos para fora do sofá onde jazia estendido uma nova facada se fez sentir na zona lombar. Desta vez o grito arrastou lágrimas a que se seguiu a imobilidade própria de quem está atemorizado perante um cenário de dor.
Com a lentidão de quem manobra numa apertada loja de cristais começou a analisar as queixas do seu corpo. Rapidamente percebeu que qualquer movimento das pernas tinha como consequência uma insuportável tortura. Já raiando o pânico procurou o telemóvel para pedir socorro. Virou a cabeça e com o olhar o buscou junto do comando da televisão, onde usualmente o pousava, para aí encontrar o vazio. Quis recordar onde deixara o aparelho mas a dor turvou-lhe o raciocínio. Urrou. Praguejou. Arfou.
Por momentos, breves momentos, correram pela sua mente ideias de paralisia, cadeiras de rodas, camas de hospital, dependência de terceiros. Em desespero lembrou-se de ter atendido uma chamada na cozinha antes do jogo, enquanto abria uma cerveja, e pousado o telemóvel na bancada. Tinha que lá chegar.
Buscou concentração, interiorizando o esforço que lhe era exigido. Concebeu mentalmente o trajecto. Testou os movimentos. Então, com muito cuidado, rebolou para o chão. A deslocação fê-lo explodir de raiva, gritando a dor aguda. Quedou-se procurando normalizar a respiração.
Lentamente, usando apenas a força dos braços, arrastou-se até à cozinha. Percebeu que evitando alguns movimentos poupava-se à dor. E assim, rastejando, telefonou a Inês, deixando-se ficar no chão da cozinha, de peito para o ar, enquanto aguardava por socorro. Quis chorar a impotência que o afogava, mas as lágrimas recusaram partilhar o momento e guardaram-se para outras ocasiões.
No hospital confirmaram o diagnóstico que se adivinhava. Tinha feito uma hérnia discal. Nada recomendava a cirurgia pelo que tinha que se habituar à ideia de viver com ela. Entretanto encharcá-lo-iam de analgésicos e relaxantes musculares e recomendavam vivamente que começasse uma dieta para tirar algum peso da coluna.
Logo que pôde foi consultar o seu médico e amigo de longa data. Este riu-se, confirmando o rigor do diagnóstico e dos conselhos e repetiu:
- Olha, Luis, eu tenho 2 hérnias discais, uma com vinte anos e outra com quatro. E vivo com elas. Tens que ter mais cuidado, em especial com os esforços brutos, fazer exercício adequado, especialmente natação, ter cuidado com a postura e emagrecer uns quilos, tudo para aliviar o teu esqueleto sobrecarregado.
Quando terminou a baixa não voltou a embarcar. A Armada começava a enfrentar a necessidade de reduzir custos e navegava o menos possível para não desperdiçar o cada vez mais caro combustível. Mantiveram-no no Alfeite por um ano, ocupado a nada fazer, até que o passaram à reserva. O sonho de muitos foi por Luis realizado sem que sequer pensasse nisso: ia para casa, sem trabalhar, e receberia o seu ordenado todos os fins de mês.
Nesse ano, entre uma nova dieta e o ginásio, perdeu vinte quilos. Escondeu na memória a lembrança do susto e do sofrimento passado.
Passados nove anos ainda sentia as queixas da sua maleita. Porém, com os cuidados que seguia, ainda conseguia aguentar com o esforço de ser agricultor. Tudo isto lhe passou pela cabeça enquanto, sozinho, arrastava os cadeirões para uma nova posição, mais adequada. Seria tão mais fácil pedir ajuda e fazê-lo a dois, mas a teimosia era uma das suas características. Teimosia e orgulho da sua autonomia, independência, de conseguir fazer sozinho o seu trabalho.
Apesar de ter estado anos na Marinha, inserido numa hierarquia, Luis não se considerava um jogador de equipa. Normalmente preferia trabalhar sozinho, fixar os seus objectivos e atingi-los por si, não estar dependente de outros para apregoar o seu sucesso, nem ter em quem culpar pelos seus fracassos.
Naquele monte funcionava a única equipa na qual alguma vez estivera bem inserido: a família a dois que constituíra com Inês. Mas isso apenas acontecia porque ela era, tal como ele, uma pessoa que gostava de estar no controlo da acção, no domínio do resultado. As suas carreiras revelaram isso mesmo, pois ambos assumiram papéis de chefia, ainda que em planos muito diferentes.
Ali, a dois, repartiam as tarefas de forma a cada um cumprir a sua, e raramente as dividiam para serem cumpridas a dois. Autonomamente trabalhavam o trabalho que o monte pedia. Um lavrava, o outro cuidava dos animais; um colhia enquanto o outro limpava a casa; um cozinhava enquanto o outro podava. E assim se afastavam durante o dia prezando os momentos que, mais tarde, tinham juntos.
(continua)
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