27.11.08

Desertos (IX)

(continua)
8
AO ABANDONO

- O caminho é plano. Em pouco mais de meia hora estaremos lá.
- Quantos quilómetros? – perguntou Nuno.
- Vinte e dois.
- O frio não ajuda.
- Tens razão. Pedalar todo coberto por roupa não é fácil. Ontem, como a distância era muito curta, nem me apercebi.
- É melhor não falar muito. Poupa-se o ar frio nos pulmões.
Pouco passava das nove e meia da manhã quando partiram. O sol envergonhava-se atrás de nuvens altas demorando a aquecer o ar gelado da noite alentejana. Aqui e ali círculos de geada pintavam de branco terra e plantas. Com uma pedalada firme e constante, aproveitando a máxima desmultiplicação disponível entre pedaleiras e carretos, rolavam rapidamente em direcção à cidade.
Aproximaram-se por Poente, passando pelo ramal de acesso à auto-estrada há muito saudosa das altas velocidades. Avançando com o castelo pela direita, empoleirado com a antiga pousada que em tempos muita gente trouxe ao descanso da planície, entraram no núcleo urbano sem ver vivalma.
- Mesmo para um dia de Inverno, isto está demasiado vazio. – desconfiou Nuno.
- Infelizmente é normal. Da última vez que cá vim já pouca gente por cá vivia. Todos os mais novos caíram na ilusão da cidade e fugiram para Setúbal, Almada, Lisboa, quando o Governo anunciou que apenas os grandes centros continuariam a ter electricidade.
“Ficaram os mais velhos. Porém, ao contrário dos que sempre viveram nos montes, com muito trabalho e poucas comodidades, e que continuaram a sua vida sem grande sobressalto, os velhos da cidade já nada sabiam da dureza da vida e os dois primeiros Invernos sem aquecimento e Verões sem ar-condicionado fizeram muitas, mas mesmo muitas vítimas. Aos poucos foram morrendo, desistindo da vida, fugindo aos maus dias que se avizinhavam para assim guardar os bons tempos do passado. Hoje pouca gente vive aqui.
Avançaram para o Rossio. Por todo o lado se viam sinais de abandono. Nas casas, nas ruas, nos canteiros, no lixo que se acumulava onde antigamente o Presidente da Câmara mandava pôr flores. O lago tinha apenas restos putrefactos de chuvas antigas. Junto aos passeios carros abandonados entregavam-se à ferrugem, com os pneus flácidos, vazios, ressequidos, esquecidos do tempo em que havia combustível para os alimentar.
Junto do “Águias d’Ouro”, café-restaurante cuja fama vinha do século passado, cinco velhos expeliam baforadas de vapor no ar frio da manhã. O sol que os iluminava não os conseguia aquecer, tarefa essa entregue às pesadas samarras de pele de ovelha cosidas com a sabedoria dos tempos, e aos gorros de lã com abas para tapar as orelhas. Assim que viram as bicicletas pararam a conversa e focaram atenções nos recém-chegados. Foi notória a colocação dos três cajados e duas bengalas que seguravam em posição de defesa. Imóveis, desconfiados, aguardaram a aproximação.
Já perto deles um dos velhotes reconheceu Luis e, aliviando a tensão, exclamou:
- É o neto da Jacinta do Zé Coirato. Vem lá com um catraio.
À boa maneira alentejana o avô de Luis ganhou a sua alcunha aos 11 anos quando se sentiu enjoado com uma sandes de coirato, vomitando o pitéu então raro para a boca de um pobre.
As bicicletas pararam e Luis, desmontando, cumprimentou o grupo. Palavras de circunstância afastaram-se lestas dando lugar à recolha de informações.
- Isto está cada vez mais vazio.
- Pois é. Somos cada vez menos para jogar à sueca.
- E temos cada vez mais frio no Inverno e calor no Verão. – concluiu um segundo.
- Então, Luis, o que é que te traz à cidade?
- Tenho que ir falar com o Sargento Calado, da GNR.
- Então estás mal, que o homem já abalou.
- Para onde? Quando volta?
- Não te sei dizer... mas apostava que não voltarão?
- Não?
- Ele e o rapaz, o Coito, o soldado...
- Sim...
- Arrumaram a trouxa e partiram ainda antes do Natal. Ao que parece lá na Lisboa precisam de todos os guardas disponíveis pelo que os mandaram partir. Assim como assim, aqui já nada faziam. Já não há nada para guardar.
- Como assim? Então e vocês?, não precisam da ajuda da GNR?
- Para quê? Se nos chatearmos entre nós, entre nós resolvemos o caso tal como os nossos avós o faziam. E de fora não vem ninguém.
Luis engoliu o comentário que lhe veio à boca e sentiu o ardor da azia. Não valia a pena incomodá-los com a história de Ti’ Francisca e Ti’ Zé. Ainda assim não resistiu a provocá-los.
- Mas quando estávamos chegando vocês puseram logo as varas a jeito.
- Sim, Luis... agora somos mais desconfiados... mas é só porque estamos sozinhos e velhos, e a coisa ruim aparece quando menos se espera.
- Bom, se agora já não têm a guarda tenham mesmo cuidado. Nunca se sabe quando pode aparecer por aí alguém com estranhas intenções.
A conversa estendeu-se por mais uns minutos tendo Luis procurado por mais novidades sem qualquer sucesso. Despediram-se então regressando à pedalada.
- Então e agora?
- Ao posto da GNR.
- Mas eles foram-se embora...
- E se deixaram alguma coisa deverá aproveitar aos que por cá ficaram. Vamos ver se conseguimos encontrar alguma coisa.

Entraram no posto por uma janela que Luis quebrou. Lá dentro, tirando o pó, e a luz difusa que se intrometia por entre os tabuados que entaipavam as janelas, não parecia um posto abandonado, mas tão-só fechado para almoço. Mesmo longe da hierarquia, abandonando a terra onde viveram tantos anos em direcção a uma cidade onde a violência os esperava, os dois militares retiraram em ordem, sem confusão. Tudo estava como que esperando o seu regresso, como se amanhã aquela porta se abrisse e por ela entrassem o sargento Calado e o soldado Coito, bem barbeados e nos seus uniformes cinzentos voltassem a gerir o posto.
Luis e Nuno circularam pela casa de dois andares, espreitando ofícios que repousava, em armários e secretárias, abrindo as portas que surgiam no caminho e enfiando o nariz em todo o lado. Nada viam que lhes pudesse ser útil. Até que encontraram, num recanto junto ao gabinete do oficial de serviço, uma porta metálica trancada.
- É seguramente o armeiro, que tem estrutura de cofre. Para o deixarem trancado é possível que tenha alguma coisa lá dentro.
- Mas não seremos capazes de lá entrar.
- Tens que pensar como um GNR.
- Como assim?
- Até podem ter levado uma chave para entregar ao seu chefe. Mas não sabiam se alguém iria voltar, ou quem, ou quando. Por isso aposto que algures neste edifício se esconde uma chave para abrir esta porta. E talvez mesmo todas as portas do posto.
- Então será nas cavalariças. É o ponto de chegada para quem viaja a cavalo e terá sido o ponto de partida dos dois militares. Além do mais está fora do edifício, ou seja, é menos apetecível, logo menos provável de suscitar o interesse de um desconhecido.
- Ora aí está. Esse é um pensamento de GNR. Mas, - continuou Luis enquanto saíam para as traseiras em direcção ao barracão dos cavalos, - as cavalariças são todas em madeira, por isso...
- Por isso há o risco de serem derrubadas para lenha.
- Bravo. Vejo que entraste rapidamente neste espírito. Só espero que toda esta sabedoria não se torne chocha. Então, o que é que está cá fora que não seja em madeira.... Talvez os bebedouros, todos em tijolo.
- Ou o tanque da roupa, ali ao canto, e que é o objecto que menos curiosidade ou interesse suscita. Ninguém quer saber dele apesar de haver um em todo o lado.
- Também não está mal. Eu vejo os bebedouros, tu o tanque. Boa sorte.
Quer uns quer outro estavam já rodeados de ervas e musgo. O tanque, em desuso havia mais tempo, confundia-se com o meio envolvente, qual camaleão imóvel. Nuno foi lesto e na parte interior de uma das angulosas pernas descobriu pendurado um porta-chaves no qual, entre outras, estava a desejada entrada no armeiro.
Nuno começava a revelar-se, a definir a sua personalidade, a vencer a adolescência em passo acelerado em direcção à condição de adulto. Apesar de protegido pelos pais, e pelo casal amigo que desde pequeno o conheciam, Nuno descobrira o à-vontade suficiente para assumir frontalmente as suas ideias e convicções. Com isso começava a ser visto, especialmente por Luis, mais como um outro elemento válido do que o filhote pequeno que temos por perto de quem devemos cuidar e proteger .
A vida dura que Nuno experimentava começava também a mostrar-se no seu corpo. O trabalho deu-lhe músculos como se se dedicasse todos os dias a sessões de ginásio para desenvolver o físico. A voz engrossou, a barba começou a espessar no rosto quadrado, e notoriamente cresceu até ultrapassar a altura do seu pai. O cabelo liso, que fazia por manter curto, tinha exactamente o mesmo castanho dos olhos, mas manifestava a vontade de se tornar branco ainda antes dos trinta.
Por entre exclamações de satisfação perante o achado de Nuno, voltaram à porta metálica que com quatro voltas da comprida chave se escancarou perante o olhar de ambos. O cheiro a óleo e pólvora subiu aos seus narizes. Nas três paredes suportes de armas vazios revelavam que toda a ferramenta letal tinha acompanhado os militares à medida que foram abandonando o posto. Por baixo, estreitos armários entreabertos revelavam algumas caixas com centenas de munições que tinham ficado para trás.
Luis pegou numa das caixas e constatou:
- Devem ter todas mais de vinte anos. Deixaram para trás o peso morto das munições mais velhas e que podem não estar em condições.
- Servem para alguma coisa?
- Para nós servem. O mais que pode acontecer é premir o gatilho e nada acontecer. Mas vamos levar o que nos interessa.
- Levamos as balas todas?
- Não, não. As caixas que dizem 7,65 mm não servem para nada. As de 9mm... – olhou cuidadosamente para concluir, - também não servem para as Glock. Só levamos estas caixas mais compridas que são os cartuchos para a G3. Olha para isto, - disse pegando numa delas – estas foram fabricadas há mais de quarenta anos.
- Então... – concluiu Nuno contabilizando – apenas oito caixas de 200 munições.
- Mas bem pesadas... Isto vai tornar a viagem de bicicleta menos agradável. Vamos encher as mochilas e procurar um saco ou dois para o resto.
Pouco depois, após terem coberto o vidro partido com um tampo de uma cadeira que entalaram com mestria, trancaram o posto e esconderam as chaves de volta na perna do tanque da roupa. Montaram as bicicletas e iniciaram a pedalada de regresso. Nuno perguntou:
- Então e os vizinhos mortos?
- Voltaremos para os enterrar. Nada mais podemos fazer.
(continua)

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