9.1.13

Muletas

Apoiada nas muletas, com um pé no ar, falava irritada, áspera, mas muito baixo. Por momentos pensei que falava sozinha, mas depois apercebi-me dessa modernice do "mãos livres" que põe os sãos a comportarem-se como loucos. De baixa estatura, com excesso de peso, tinha o cabelo quase vermelho.
Estava mesmo furibunda, e a sua face transfigurava-se com tamanha contrariedade. Apurei os ouvidos, pus-me a jeito, e então percebi porquê.
Então ela, que partira o pé e só tirara o gesso havia dois dias, é que ainda tinha que ir buscar o puto a casa da sogra? Ela que já não estava de baixa, que trabalhara o dia todo... ela que aguardava pelo metro na gare do Marquês, é que tinha de ir a coxear apanhar mais dois autocarros para levar a criança para casa?
Seria que o interlocutor não tinha presente que, uma vez em casa, ainda seria ela quem, mal apoiada nas muletas, iria cozinhar o jantar? E não, não iriam mandar vir uma pizza, porque não há dinheiro para isso.
A conversa, a discussão,  continuaria não fosse a entrada do metro na estação, enchendo o ar de ruído. Ouvia-a ladrar um "adeus" antes de lhe dar passagem na entrada.
O metro não vinha cheio, mas não havia lugares vazios. Aproximou-se dos bancos reservados e ninguém se mexeu. Vi-a hesitar e fui em seu auxílio.
- Qual de vós se levanta para dar lugar a esta senhora?
Com um pedido de desculpa murmurado, um senhor ergueu-se e abalou.
Ela, elevando o olhar, mirou-me com um sorriso e agradeceu. Se calhar, este foi o momento alto de um dia que não lhe estava a correr nada bem.

1 comentário:

Ouriço-Cacheiro disse...

transportes públicos, esse grande laboratório de escrita ;-)