Cada vez que o silvo da broca se fazia ouvir encolhia-se todo, ficando ainda mais pequeno. A cabeça colava-se aos ombros, os joelhos aproximavam-se do peito, os pés encarquilavam-se dentro das botas, punhos e dentes cerrados.
Por vezes, a compor o ramalhete, ouviam-se uns gemidos. “Hum, Hum, Huuuuummm”.
Serenamente, a sua mãe lia uma revista. Mais duas pessoas aguardavam a vez, sem mostrar o mínimo indício de preocupação. Ainda não sabia bem o que era isso de ir ao dentista, mas os colegas da escola tinham traçado o cenário mais negro que conseguia imaginar. E a cada silvo da broca imaginava trepanações dolorosas.
Ouvia-se um rádio, baixinho, a fazer ambiente. Não conseguia perceber o que diziam e não conhecia as músicas que passavam. Permitia-se pensar que eram músicas de gente nova, mais modernas que aquelas que os seus pais ouviam lá em casa.
Tocou a campainha e entrou mais um carneiro para o altar. Vinha pela mão do pai e trazia uma consola portátil nas mãos. Anestesiado pelo jogo virtual, nem tremia na antecipação.
Olhou lá para fora, pela janela, e sonhou uma fuga. Qual herói de BD saltaria partindo os vidros e aterrando na rua por onde correria fugindo aos malvados bandos que sem sucesso o perseguiriam. Focou-se então no candeeiro de pé, com o seu quebra-luz amarelado. A luz quente que difundia atraía uma mosca. Pediu-lhe ajuda em silêncio, imaginando-se a voar em cima do peludo insecto.
Foi então que, com um tremelique de aviso, a luz se apagou. A do candeeiro de pé, a das lâmpadas do tecto, a que vinha da rua. A sala de espera ficou às escuras, com excepção da luzinha branca indicando a saída, com um homem verde a correr em fundo branco. A broca parou. A música parou. Tudo restou em silêncio.
Depois de dez minutos, confirmaram que a electricidade demoraria a voltar. Caíra um poste na sequência de um acidente de viação. A rapariga de branco, com máscara facial desviada para o pescoço ofereceu-lhe a ordem de soltura. As consultas estavam canceladas. Por hoje, desviara a bala, escapara ao pelotão de fuzilamento, saltara da cadeira eléctrica.
Ainda não seria hoje que se sujeitaria ao malvado Dr. Dentista, pérfido vilão da broca que silvava.
Sem comentários:
Enviar um comentário