GOZO
Com uma lentidão estudada levantou a tampa do estojo. O exterior de alumínio preto revelou um interior de espuma igualmente escura. Quase reverencialmente acariciou o aço frio. Com um toque sentiu a madeira bem tratada.
Respirou fundo. Olhou em volta.
Num impulso, rápido como uma máquina, montou as quatro peças distintas: cano, culatra, coronha, mira telescópica. Num ápice dera à luz uma arma de precisão. Mortífera.
Agora, o requinte. Primeiro o enorme silenciador. Depois os cartuchos. Um a um. Cinco certidões de óbito.
Era incapaz de recordar quantas vezes fizera aquilo. Quanto dinheiro recebera para fazer aquilo. Agora já não. Desde a Bósnia que não matava ninguém. Nunca gostara do mato, pelo que hoje... Os seus tempos de sniper tinham ficado para trás. Mas não a experiência, a técnica, a qualidade dos actos.
Assim, se hoje se encontrava naquele terraço era apenas por gozo. Já ninguém largava dinheiro para que trabalhasse. Passara a ser mais um na multidão. Aliás, já não havia dinheiro que pagasse aquilo que lhe faltava.
Por isso, por prazer, erguia-se agora sobre o murete, assentando o pequeno bipé fixo ao cano. Procurou uma vítima. Ah!, que momento! Quão próximo de Deus se sentia. Escolhia quem iria morrer. Tinha o dom de terminar com uma vida, e aquela arma era o seu longo braço.
Uma velha. Não... pouco impacto.
Uma criança... nã... não via nenhuma a jeito.
Aquele bem vestido. Sim, aquele... Tem um ar feliz e bem sucedido. Nem trinta anos deve ter. E aquela gravata vermelha... mesmo a pedi-las. A cruz telescópica assentou sobre o peito do bem vestido. Esperou que ele passasse na passadeira. Compensou o vento.
Espremeu o gatilho. Um pequeno som abafado, um silvo, um clack bem oleado e um tlim de uma cápsula a encontrar o chão, rebolando.
Três segundos durou a morte a atingir aquele rapaz. Três segundos, uma pancada cava, um tipo que cai projectado para trás enchendo de sangue uma camisa branca. Tudo numa rua quase a mil metros dali.
Sentiu no estômago a tremura habitual. Um gosto especial. Tinha que ser rápido a escolher outro alvo, antes de sair dali, não fosse alguém olhar para cima.
Uma grávida. AH!, essa sim, não falharia nas notícias. A mulher tremeu, gritou de dor, e caiu para trás. Bolas!, falhara o ventre e agora já nada podia fazer.
Mais um. Só mais um. Dois, naquela janela. Enrolados. Nus. Sim, percebia-se através dos cortinados. Largou as restantes munições e imaginou-os mortos sobre uma cama de vermelho empapada.
Recolheu as cápsulas deflagradas, guardou-as no bolso e desmontou o longo braço. Sabia que era bom. E que não perdera o jeito. Daqui a uns meses repetiria a brincadeira. Pelo gozo! Noutra cidade que não Lisboa.
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