5.4.05

"Vidas" (8)


LONGE DE MAIS

Tinha ido longe de mais. Quase de certeza que tinha ido longe de mais. Desta vez ultrapassara os limites.

Havia muito que Natalino tinha esta fixação por pernas e collants. Todo ele tremia quando uma mulher de saia curta cruzava as pernas envolvidas em meias de lycra, de nylon¸ do que quer que seja que os collants são feitos. A textura lisa, a doce carícia de uma fibra...

Gostava tanto daquilo que em casa, acompanhado pela sua solidão, vestia collants e com eles passeava em cima dos sapatos amarelos de salto alto que um dia subtraíra numa sapataria cheia de gente.

Aqui há tempos já tinha feito uma de artista da qual se safara por pouco. De uma loja, através da montra partida à pedrada, retirou cinco pernas de manequim, todas com meias e uma, imagine-se, com liga. Porém, o barulho e o alarme obrigaram-no a fugir através do escuro das ruas apertadas, com as pernas debaixo do braço.

Ahhhh... mas em casa, Oh!, deleite! Deitado na cama com aqueles cinco pés, pernas, a tocarem-lhe enquanto nu as afagava. O frio do plástico aquecido pela imaginação doente levaram-no ao êxtase, à dolorosa exaustão de uma fantasia.

Por isso, agora fora longe de mais.

Quando as pernas sintéticas perderam o brio de outrora, começou a sentir uma atracção cada vez mais forte pelas suas irmãs de carne e osso. Andava o mais possível de transportes públicos, onde sempre se sentava estrategicamente, de modo a ver um pedacinho mais ousado de carne. Na rua, torcia o pescoço enquanto mulheres por si passavam. Em casa babava-se frente à televisão, ansiando por imagens que fossem mais além.

No quarto, as pernas de plástico jaziam a um canto sobre as revistas de moda e os catálogos de lingerie. Não queria pornografia!, queria pernas, um pouquinho para além da imaginação.

Por isso agora achava que tinha ido longe de mais.

"Mas agora é tarde de mais para recuar", pensou, enquanto corria novamente na escuridão das ruas estreitas. Debaixo do braço mais um par de pernas, cujas meias destruíra, rasgando-as com o serrote que igualmente carregava. Tudo gotejava sangue.

A sua vítima ficara para trás, tombada ao abandono junto aos contentores do lixo, exangue, mutilada.

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