O peso dos anos afundava-o à medida que conduzia lentamente pelas ruas vazias onde crescera. Naquela soalheira tarde de domingo, raras eram as pessoas com quem se cruzava no silêncio de uma terra outrora tão cheia de vida.
Não muito longe da grande cidade, havia quarenta anos, aquela fora uma zona de qualidade reconhecida e desejada por muitos que, aliciados pela auto-estrada então inaugurada, foram engodados com promessas de viagens de quinze minutos para o trabalho. Porém, o tempo e a experiência encarregaram-se de lhes desfazer as ilusões impondo uma garantida hora de engarrafamento todas as manhãs, e outra ao fim do dia. Acrescendo a tal desgaste, somaram-se portagens cada vez mais caras, os custos do estacionamento na grande cidade e o brutal aumento do combustível.
Hoje, cruzava as ruas onde crescera e só via casas arruinadas e carros quedos e mudos, abandonados na berma, enferrujados, salteados, canibalizados. À frente da casa do Sr. Sousa, outrora luxuosa vivenda em cujos largos relvados bem cuidados se passeavam os seus labradores premiados, mas hoje reduzida a um esqueleto grafittado de janelas quebradas e plena de lixo, repousavam eternamente os restos do Mercedes 280 SL que alimentara os seus sonhos de adolescente. Em cima de tijolos, com os vidros partidos, os bancos ausentes, a capota rígida partida e marcas de incêndio na frente, era agora uma mera sombra da bomba vermelha que o fez estremecer da primeira vez que o viu. Recordou-se do seu sorriso de menino ao ouvir o roncar do motor na chegada à praceta onde jogava à bola, anunciando-lhe quilómetros a alta velocidade.
Seguiu em frente progredindo pelas ruas desertas. Passou ao largo do prédio de luxo que viu construir, o primeiro ali nas redondezas. Problemas com a Câmara embargaram a obra durante um ano, oferecendo-lhe um cenário de guerra para explorar com os amigos. Saltando entre andaimes e pisos inacabados, durante tardes guerreou com tubos de electricidade pelos quais soprava verdes bolas das árvores de rua. Até que o Fernando falhou o salto por cima do vazio do poço de elevadores e partiu um pé. Vieram então vedar o acesso àquele esqueleto de fantasia que depois concluiram e venderam a preços luxuosos, “pornográficos”, diziam os seus pais.
Hoje voltara a ser um mero esqueleto. Os moradores cansaram-se do subúrbio e partiram. Os que vieram a seguir não tiveram capacidade para pagar aos bancos os gordos empréstimos que enterraram na compra da casa. Aos poucos o prédio ficou vazio; aos poucos o mundo apoderou-se do espaço e as gentes levaram portas, janelas, móveis, candeeiros, fios, torneiras. De tudo um pouco poderia ser encontrado nas pequenas casas das proximidades, casas essas também hoje parcamente ocupadas.
As lojas que antigamente eram âncora da vida local há muito tinham desaparecido, tragadas por outros negócios mais baratos e alternativos. A competição feroz com os Centros Comerciais dos arrabaldes arruinou os pequenos comerciantes, aos poucos substituídos por emigrantes trabalhando de dia e de noite para ganhar o seu sustento e o sustento da família que ficara para oriente. Mesmo esses tinham partido, entretanto, sucedendo-se agora fachadas frias e vazias, montras partidas e cheias de lixo, néons quebrados e apagados.
Dos restaurantes, há muito se esqueceram os poucos que ainda por ali vivem. Deixou a memória vaguear até àquela que será a ida a um restaurante mais antiga da qual se consegue lembrar. Sentado na cadeira em cima de duas listas de telefone para alcançar o prato, calado e temeroso pela autoridade que o pai, ríspido, impunha nestas saídas em público. Passava agora à porta desse restaurante e via o aviso já queimado pelo sol que há mais de uma dúzia de anos informava: “Pedimos desculpa pelo súbito encerramento. Prometemos ser breves”. E foram. Duas semanas após a afixação desse papel e do encerramento já no Tribunal corria a inexorável falência.
Aquilo que em tempos fora a casa onde cresceu já não existia. Vendida após a morte dos pais, os novos donos nem sequer a ocuparam. Numa manobra de especulação duplicaram o investimento e venderam-na a um grupo económico que arrasou o quarteirão fazendo nascer um centro comercial. Quatro anos após a inauguração um incêndio reduziu-o a cinzas e nunca alguém mexeu nos escombros, hoje já encobertos por pequena vegetação.
Mais há frente o terreiro onde brincara horas sem fim com os amigos de infância tinha dado lugar a dois gigantescos pilares para uma passagem aérea que ficou por construir. Os monstros de betão erguiam-se, lambidos por heras que os trepavam abraçando-os com força. Cá em baixo, barracas acoitavam gentes invisíveis, não obstante os reveladores fumos brancos de pequenas fogueiras que anunciavam a sua presença. Por ali brincara a guerras sem malícia, muito anteriores à guerra que mais tarde veio e o levou, a si e à sua geração, para paragens longínquas disparar contra o “inimigo” que atacava sem rosto roubando toda a inocência que ainda pudessem ter levado consigo.
Sacudiu as ideias e atentou no homem que, à frente, mijava para o alcatrão, abanando para a frente e para trás, na justa medida que o vinho deixava. Ficou convicto que era o “Chinês”, o terror da secundária, que tantas vezes o perseguiu anunciando maus-tratos que ficaram por consumar. O “Chinês”, o matulão briguento e forte, que nunca recuperou da ida para a guerra da qual regressou o farrapo que continuava a ser.
Uns minutos à frente passou pelas suas antigas escolas. A dos pequenos, à esquerda; a dos outros, à direita. Grafittadas vezes sem fim, já nem era perceptível a cor branca original. Há mais de uma década que ali apenas se ensinava, de boca para orelha, a vulgar arte do crime, do carteirista, do esticão, da entrada em casa, por arrombamento, por escalamento, do tráfico…
Com uma estranha sensação de vazio, de desilusão, acariciando o forte murro no estômago que esta visita lhe dera, acelerou mansinho para a auto-estrada. Nunca deveria ter regressado. A curiosidade destroçou o romantismo com que guardava o passado. Agora, as últimas imagens registadas iriam impor-se e perdurar até ao fim dos seus dias.
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