O ataque do Benfica estava perdulário. A defesa um buraco. O meio campo não se via.
António sentia-se incomodado com o passar do tempo e o resultado em branco. E a cada minuto aditado no canto superior direito do televisor aumentava o incómodo de mais um desaire a aproximar-se.
Pior que tudo, o adversário ganhava alento e ameaçava agora com ataques mais frequentes, mais consistentes, mais perigosos.
A cerveja despejada no copo já morria, pois a concentração na pantalha colorida fizera-o esquecer-se dela. Assim como dos amendoins que restavam da lata que abrira na primeira parte. Sentado no sofá, torcia as mãos uma na outra, inquieto, preocupado, vibrante, temeroso. Excitado, desapontado.
Mais um remate falhado, com estrondo devolvido pela trave. Ao grito interrompido de golo seguiu-se um mortífero contra-ataque. O defesa adversário repeliu a bola lá para o meio-campo e o seu avançado, num passe de mágica, deixou para trás os dois centrais do Benfica.
Só foi parado com uma entrada extemporânea, por trás, do lateral direito que num sprint fantástico apanhou-o à entrada da grande área.
A falta deu direito a cartão vermelho directo, uma inevitabilidade com a qual lidou bem. Mas o cego do árbitro e o seu atrasado assistente apontaram a marca da grande penalidade. Enquanto os jogadores do Benfica intimidavam os juízes, arrecadando mais uns amarelos e outro vermelho, António urrou, saltou, esbracejou, praguejou, explodindo o seu desagrado e frustração.
Foi nesse preciso momento que a sentiu. A dor aguda que lhe queimou o peito, subiu ao olho direito e ferveu-lhe na cabeça. Estendeu-se ao braço paralisando-o. Quis respirar mas isso apenas lhe aumentou o desconforto. Quis chamar por ajuda mas não conseguiu.
As pernas fraquejaram. O corpo tombou no chão de tijoleira sem barulho, enrolando-se entre o sofá e a televisão.
António não viu a impossível defesa do guarda-redes encarnado. Assim como não viu a sua espectacular capacidade para agarrar a bola e colocá-la milimetricamente no avançado que, só entre dois defesas, se deslocava na linha divisória do meio-campo. António também não viu como este, parando o esférico no peito, se virou e num chapéu monumental aproveitou o avanço do guarda-redes contrário, marcando um impressionante golo que lhes valeu a passagem à final.
António já não viu nada disso.
Ermelinda passava a ferro a roupa da semana, em silêncio, embrenhada nos seu pensamentos. Lá ao fundo ouvia o gritos do marido, sofrendo com a bola como de costume. Aliás, achava mesmo que com a idade António estava a ficar particularmente sofredor com os jogos do Benfica, assim como com os jogos da Selecção. Aproveitava, por isso, estes momentos para se ausentar da sala, não contribuindo para a tensão que se sentia enquanto uns tipos escandalosamente pagos faziam asneiras no relvado.
Ermelinda achava piada pois nem precisava de ver o jogo ou ouvir o relato, já que pelos gritos do marido e dos vizinhos, também eles fanáticos benfiquistas, conseguia contabilizar o marcador. Por isso estranhou quando ouviu os gritos do Álvaro, do andar de cima, do Paulo, do apartamento ao lado, e do Sr. Cabrita, lá da cave festejando o golo do Benfica.
A estranheza levou-a à sala, onde após o susto inicial conseguiu chamar o 112. A sua pronta intervenção salvou António do ataque cardíaco, assegurando-lhe tempo para a operação de urgência e tempo para mais 14 anos de vida.
Nesses 14 anos, António nunca mais viu a bola. Nunca mais ouviu um relato, discutiu um resultado, comentou uma arbitragem. Como um alcoólico em recuperação, como um ex-toxicodependente, todos os dias fazia questão de dizer: hoje, não liguei ao futebol.
1 comentário:
Com esta crise o SNS ainda vai banir o Benfica quando contabilizar o total anual de despesa que este lhe há (sobretudo em doenças coronárias e nas sequelas da violência doméstica).
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