Não há dúvida que a sala era maior do que parecia. Porém, o espaço livre era tão pouco que dificilmente se compreendia como aquela figura chegara ao cadeirão para aí se sentar sob a única luz.
Não havia qualquer janela e apenas a porta interrompia as estantes que cobriam, de alto a baixo, todas as paredes. No meio, uma secretária coberta de livros, papéis, canetas, recortes. Por todo o lado o livro reinava. As estantes não tinham espaço, recheadas de lombadas. Livros cuidadosamente arrumados segundo um critério lógico misturavam-se com outros empilhados por cima, à frente, em segunda fila, ora lidos à procura de um canto para repousar, ora esperando ansiosamente o momento de serem levados para debaixo da luz.
Pelo chão cresciam estalagmites impressas, algumas ameaçando a ruína, outras sobrevivendo encostadas à solidez das suas irmãs.
Apenas sob o cone de luz amarela parecia haver ordem, reinando o caos na penumbra circundante. Ali, sob o foco do único candeeiro aceso, o velho homem espreitava pelos pequenos óculos de ver ao perto as letras criteriosamente impressas nas páginas de um livro comprado na véspera, em mais uma saída pelos seus alfarrabistas favoritos.
O silêncio era violado apenas pelo virar das páginas, por um ou outro pigarrear que anos de tabaco lhe tinham deixado, ou pelo frequente estalar da madeira. Estalavam as estantes, estalava o chão, estalava o tecto. Mas nada perturbava o Leitor.
Estavam ali anos de acumulação de livros. Só nos últimos tempo começara a ficar preocupado com a possibilidade de já não os conseguir ler todos. Mas, ainda assim, não resistia em comprar mais, e mais, e mais. Nos alfarrabistas, nas livrarias, nos quiosques... Felizmente nunca se metera nessa coisa da internet, caso contrário o mundo seria o seu fornecedor e mais grave seria a sua compulsão para comprar mais livros.
O Leitor lia. Lia todo o dia. Desconhecia os prazeres de se sentar a ver um filme, uma série de televisão, pois os breves olhares que lhes deitara encontraram algo muito aquém do que imaginava enquanto lia e absorvia os textos encadernados. Desconhecia o prazer da música, pois sempre a achara uma enervante distracção. Preferia o silêncio.
O Leitor lia. E não queria fazer mais nada. A sua irmã passava lá por casa e deixava-lhe a comida pronta, cuidava da limpeza e certificava-se que ainda era vivo. Mas poucas palavras consigo trocava. Sabia que não se devia intrometer entre si e o livro.
Entregue aos prazeres da palavra escrita, o Leitor lia, sabendo-se incapaz de redigir algo tão belo, ou criativo, como qualquer das páginas que devorava.
E por isso, apenas lia. Nunca escrevia.
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