12.3.13

Sopa quente

Pela segunda vez em dez minutos acocorou-se entre dois carros e contou as moedas que tinha no bolso. € 17,00. 
As mãos tremiam, não apenas do frio. As pernas, pelo contrário, estavam a ferver, tensas, esticadas, comendo-o com dores e ardores, comichões insuportáveis. Ergueu-se com um gemido e olhou o horizonte sem ver movimento algum. Escolhera mal. Apostara no sítio errado. Ficava em caminho mas ninguém ali passava. Esperava arrumar uns carros, os suficientes, mas apenas uns sete tinham vindo ali estacionar e, desses, só três lhe deram qualquer coisa. Dois euros e meio. Precisava de vinte.
Insensível ao cheiro que soltava, das suas roupas imundas e maltratadas, agitou-se muito devagar. Na sua cabeça o movimento fora diabolicamente rápido, entontecendo-o. Mais umas contracções involuntárias dos músculos enviaram mensagens de dor directamente para o cérebro que lhe pareceu inchar até quebrar os ossos cranianos.
Lá ao fundo, ao virar de um dos pavilhões do porto, surgiu um miúdo, com auscultadores nos ouvidos e olhos fixos no skate em cima do qual rolava. Instintivamente voltou  encolher-se entre dois carros e esperou. Intimamente já sabia o que ia fazer, apesar de não ser muito claro como o faria.
Concentrou-se no som dos rodados da prancha, e mediu a aproximação. Por detrás dos olhos uma neblina limitava-lhe a visão. A dor de cabeça limitava-lhe o discernimento. As contracções involuntárias dos músculos limitavam-lhe a coordenação.
Quando o rolador estava a pouco mais de dois metros ergueu-se, bloqueou-lhe o caminho e lançou um empurrão que o atirou ao chão. A surpresa estampou-se no olhar do rapaz que de imediato se encheu de  lágrimas.
- Dá-me dinheiro! - ordenou com uma voz rouca, ameaçadora, torcendo a face num esgar, meio de dor, meio de desespero.
O rapaz, mostrando que não era a primeira vez que se via naquelas andanças, pegou na carteira, abriu-a com rapidez e lançou uma nota de cinco euros ao solo. Enquanto se baixou para a apanhar o miúdo ergueu-se, pegou no skate e abalou numa retirada a toda a velocidade. Já não interessava. Já nada interessava. Tinha os vinte euros que precisava. Também ele abalou, ainda que em direcção contrária.
Doía-lhe o corpo. Doía-lhe a alma. Precisava do remédio. Parou num quiosque de revistas e trocou as moedas e notas pequenas por uma nota de vinte. Acelerou, trotando passeio abaixo.
Entrou na rua suja e viu de imediato o Káká na esquina do costume. Cruzaram o olhar enquanto se aproximava e ele foi logo adiantando serviço, baixando-se e pegando em algo que retirou de um tijolo tombado sobre o monte de entulho que o ladeava. Ao cumprimentá-lo com um aperto de mão deixou a nota de vinte seguir o seu curso, rapidamente se refundindo no bolso das calças de Káká.
As palavras de circunstância, incompreensíveis na sua maior parte, foram o interregno para o aperto de mão de despedida. Nesse momento sentiu entre os dedos o pequeno saquinho do pó mágico.
Disparou até às ruínas mais próximas onde se iria entregar ao vício, sopa quente veia acima, esquecimento concentrado, suspensão da miserável existência.

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