Ouviu o dia nascer filtrado pela dor. O som dos primeiros automóveis na avenida lá em baixo rompeu o torpor que cedo se instalara e lhe tolhera os sentidos durante toda a noite. A manhã, típica de nevoeiro lisboeta, revelava um cenário caótico ao longo da encosta degradada. Em ambiente pós-holocáustico, tendas semi-erguidas, barracas improvisadas, corpos, imundíce, cães a vaguear de focinho colado ao chão. Entre todos, entre tudo o denominador comum que não se via, não se ouvia ou cheirava. Sentia-se. Pressentia-se. Sabia-se.
Assim que concebeu uma ideia esta revelou-se incontornável. Onde arranjar o próximo chuto.
Apalpou os bolsos do impermeável e encontrou uma mão-cheia de nada. Olhou à volta e nada viu. Mais uma noite dormida ao relento ao sabor do veneno. Com esforço, afastou o frio, ergueu-se e caminhou.
Não sabia bem para onde ia. Sabia apenas que precisava de dinheiro para sentir novamente o esquecimento.
Coçou-se e desejou um banho, uma cama, uma refeição quente e com direito a sobremesa. Tudo isto implicava um mundo pretérito, exigente, ao qual renunciou responsabilizando pela sua actual situação. Desejou nova dose, quanto mais não fosse para afastar da cabeça o passado, o qual não queria recordar. Agora prefere viver o dia, o presente, a dor, o desejo de alienação, a viagem.
O esforço de subir a encosta até à estrada foi demais para o corpo fragilizado. Ofegante, sentou-se contando as batidas aceleradas do coração que ecoavam na cabeça. A seu lado passou, rebolando com o vento, um jornal. Datava de uma semana atrás. Agarrou-o e leu os títulos. Para si, aquelas eram notícias tão frescas com as que tinham sido impressas pela madrugada.
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