EMPEDRADO
A janela antiga está tão maltratada quanto o prédio. Numa das zonas antigas da capital, um prédio de três andares, cinzento, sujo. Como todas as outras, tem portadas e muitos vidros pequenos, rectangulares. A tinta branca, estalada, acumula sujidade que o zelo da limpeza não consegue eliminar. Precisa de uma pintura. Tal como o prédio. Tal como tudo o que nele está.
Tal como a velha senhora que se debruça sobre a grade ferrugenta da pequena varanda. Fátima, nome santo o seu, cuja vida mais perto do Inferno esteve, contempla com os olhos húmidos o empedrado do passeio, doze metros para baixo.
As rugas são bonitas. Sim, Fátima tem uma daquelas caras velhas e enrugadas que mantêm a beleza de outros anos. Cabelos brancos, muito brancos, mas pouco cuidados apesar dos ganchos que o tentam compor. Não usa óculos, ao contrário das vizinhas, também elas nos setenta.
Veste uma bata axadrezada, azul, por cima de uma camisola, rubra como as lágrimas que vertera durante toda a noite. Lágrimas amargas, dolorosas, doentes. Lágrimas vindas directamente do coração que já não aguenta mais martírios. A vida foi cruel. A vida é cruel. Fátima não sabe porque pecado paga... mas só pode estar a ser castigada.
Foi pura coincidência ter nascido a treze de Maio e terem-na nomeado como a Santa que estava para vir. Mas desde pequena começou a encontrar o calvário de uma existência amaldiçoada. Aos cinco anos perdeu o pai, aos oito a mãe. Aos nove já a tia a pusera a trabalhar sendo alojada lá em casa como nos piores contos de fadas. Dez horas de trabalho a lavar a roupa dos outros e voltar a casa para mais umas horas de lides domésticas. Qual Cinderela, era menosprezada pela prima que se julgava a mais bela mulher do mundo apesar dos seu treze anos mal acabados.
Quando chegou aos dezasseis, conheceu um homem que por si se interessou. É esse o momento que revê agora que olha para o empedrado lá em baixo. É por esse momento, por esse homem, que os seus olhos agora choram, hoje, tantos anos volvidos. Era terno, carinhoso, e quis amá-la. Quem não quis foi a sua tia, que tudo fez para o afastar. Como podia aquela sirigaita arranjar um homem quando a sua filha, tão mais prendada, ainda estava solteira e já corria a fama de que ficaria para tia pois que nenhum homem das redondezas era capaz de domar aquele espírito mimado ou aturar a sogra que o mimara.
Sem coragem para se rebelar, deixou aquele anjo fugir, deixou que aquele ser abandonasse a sua vida. Perante a encruzilhada que se lhe deparou escolheu a pior alternativa, porque não teve coragem de caminhar na árdua batalha da emancipação.
Ainda hoje é assim. Ali, do alto da janela, vendo por baixo de si aquele candeeiro de ferro trabalhado, é incapaz de agir. Tudo na sua vida aconteceu por inacção.
Fátima só se livrou da tia quando ela morreu. Tinha vinte e oito anos, já estava envelhecida, já as ancas acumulavam celulite e trabalho, já a pele estava gasta e as mãos ásperas e grosseiras. Para não ficar com a prima, aceitou casar com Norberto, aquele viúvo que a cortejara em pouco mais de um mês. Incapaz de dizer não, casou com as lágrimas nos olhos, revendo o jovem de anos atrás, vendo o sonho que perdera, a vida que perdera, o calvário que ganhava.
Norberto era uma besta. Bebia a todo o tempo. Chegava tarde a casa e, se não lhe batia, montava-a com violência. Com um bafo a vinho e um terrível odor corporal, despia-se, despia-a e violava-a.
Começou por resistir. Mas era pior, pois ele batia-lhe e vergava-lhe a vontade de dizer não. Depois passou a fazer tudo para tornar mais rápida a tortura. Com os olhos fixos no tecto mexia-se o mínimo indispensável para que ele não conseguisse retardar o inevitável, para que rapidamente se viesse e caísse no sono. Depois ficava ali, acordada, tentando olvidar, sonhando com aquele jovem que a teria tratado bem, que com ela faria amor e não a violaria como a besta que a seu lado dormiu durante vinte e cinco anos.
Felizmente Deus concedeu-lhe a benção da esterilidade.
Apesar de desejar ter filhos, só os queria com um pai, e esse nunca o teve.
Lá em baixo passa um casal. Ela lembra-lhe como era, nos seus idos dezasseis. Ingénua, sonhadora, com o futuro nas mãos. Apetece-lhe gritar "Não largues o teu futuro! Decide tu!", mas não grita. Não precisa. Os tempos são outros, e hoje já não há tias como a sua. Hoje resiste-se, luta-se e enfrenta-se a vida pelos cornos nesta tourada em sociedade. Os olhos choram. As lágrimas quentes que vêm lá do fundo, lá do passado, precipitam-se nos doze metros que a separam do empedrado.
Uma vez viúva, uma vez só, passou os melhores anos de sempre. Não fazia nada de extraordinário. Não conhecia ninguém. Não tinha vida. Tinha rotina. Mas estava finalmente só. Foi o que teve de mais parecido com a felicidade.
Depois... aquelas dores. Não havia de ser nada. Resistiu.
As dores voltaram. Tornaram-se insuportáveis. De médico para médico, o diagnóstico foi dos piores. Era o bicho mau, o papão, o cancro. "Foi pena não ter vindo antes... agora...". Os rodeios do médico eram óbvios. Não teve coragem para perguntar quanto tempo lhe sobrava. Limitou-se a sair do consultório a chorar. E há já dois dias que chora.
É o segundo dia que está à janela. Aquela janela antiga, com muitos vidros e a tinta estalada. Debruçada sobre a grade ferrugenta da pequena varanda onde só cabem vasos contempla o empedrado e sonha em ir ter com ele em queda livre. Um impulso. Um segundo. E já está. Acaba-se a dor. Acaba-se o cancro. Acaba-se a mágoa.
Fátima não o fará. Não tem coragem. Coragem para agir. Ficará ali, à janela, até não conseguir sair da cama, onde terá uma morte agonizante.
Até então não deixará de recordar tudo. A vida de trabalho. A tia feroz. A prima solteira que acabou no Júlio de Matos. O marido que a violou e espancou. A doença que a come por dentro.
O empedrado que se recusa a subir.