A compilação que se segue tem o título "Vidas". Vão suceder-se vidas, surreais. Não se espantem, pois, pela falta de verosimilhança. No inexistente mundo da ficção podemos ir onde a realidade não nos deixa.Acho que foi por aí que andei.
Por vezes fazem-se segundas leituras, à procura de mensagens subliminares. Não o aconselho. Porque posso dizer que apenas escrevi imagens, que por alguma razão me despertaram a mente.
SÓ
Vivia debaixo da terra. Não era uma toupeira mas, no fundo, podia sê-lo. Debaixo da terra é escuro, mais escuro que a noite. Mais escuro que o negro. Mais escuro que a cegueira.
No entanto, não era cego. Sabia-o. Sabia que tinha olhos. E que estas preciosas obras da engenharia óptica funcionavam. Apesar de tudo.
Os olhos operam com a luz que absorvem, cativam, analisam, filtram... e só assim, segundo consta. Porém, debaixo da terra não havia luz. Nenhuma. Nem um reflexo, nem um cintilar, nem um pirilampo. E ainda assim os seus olhos funcionavam. Sentiam o relevo da terra húmida. Terra húmida que exalava um odor sem o qual decerto seria incapaz de viver. Terra húmida, minhocas, vermes raízes...
Também ouvia as raízes a crescer, a sorver os nutrientes que escorriam pelos túneis. Raízes que chegavam a vedar túneis.
Não sabia como fora ali parar. Não se lembrava de qualquer outra experiência anterior a este estar debaixo da terra. Não sabia quem, ou como, fizera os túneis. Não sabia como passava o tempo do qual apenas tinha a noção que o estômago lhe dava. Sabia apenas que vivia só, debaixo da terra... E que lá em cima havia gente.
Gente.
Que bom era estar ali em baixo, onde gente não há.
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