1.3.05

"Um Dia Acordei" (3)


PERGUNTAS

Estava realmente desconfortável. A cadeira era dura como é costume nestas instalações do Estado. As pessoas, horrivelmente simpáticas, lançavam-me sorrisos de benção. Como se eu precisasse do seu apoio. Como se me interessasse a opinião daquelas mulheres desconhecidas que se sentavam na mesma sala que eu.

Todas elas tinham crianças sobre as quais depositavam a sua atenção, estivessem a correr, sentadas, a choramingar ou ainda, devido à tenra idade, a dormir como só os néscios e as crianças conseguem.

Eu tinha duas aos meus cuidados. A Filipa, de seis anos, que tentava comunicar com uma miudinha loira mais alta que ela, e a Inês, com a idade de menos dois meses. Faltavam ainda dois meses para que eu aliviasse o meu corpo do peso incómodo que a barriga agora proporcionava. Mais ainda naquela sala de espera onde nos obrigam a levar os nossos filhos para uma periódica injecção matinal.

Chamaram mais um nome. Uma velha ergueu-se com esforço e chamou o neto. Curiosamente, fez-se silêncio. Todos olharam para o rapazinho que naquele momento estacou, ergueu os olhos e deixou transparecer um esgar de horror. Até ali aguentara-se, tentara vencer o medo que a sua mente guardara de pretéritas experiências. Mas aquele apelo tornou presentes as agulhas, as seringas, a dor... O rapazinho gelou e ameaçou fugir, fazer uma birra, qualquer subterfúgio válido. A avó cortou-lhe a dignidade:

- Onde pensas que vais? Queres ser um homem ou um maricas? Comporta-te e vem cá! Olha a vergonha por que estás a passar. Já viste como aquelas meninas estão ali sem medo?

Pronto! Engoliu alguma saliva para humedecer a garganta que ficara subitamente seca, endireitou-se e olhou de soslaio para as duas raparigas. "Que raiva!, porque é que aquelas desgraçadas têm de estar tão calmas? Ahhhhh!!, odeio miúdas!" Ainda em pânico, mas atingido na sua infantil virilidade, deu a mão à avó e passou por mim, pobre anho, como se fosse para o sacrifício. Decerto que hoje à tarde, quando estiver a jogar computador, que hoje já não se joga à bola na rua, não se recordará mais deste momento.

Eu, pelo contrário, lembrava-me constantemente da Inês que fazia questão de demonstrar as suas habilidades para o futebol ou artes marciais. Fechei os olhos por uns segundos recordando com um arrepio as dores e o prazer de ter trazido a minha Filipa ao mundo. Iria passar por tudo outra vez. Compreendia tão bem aquele rapazinho. As dores também me assustam. Sempre tive pavor da dor. Mas... receber nos braços uma coisinha encardida, viva, que dentro de mim saiu é um milagre que compensa quais quer dores.

Senti um beliscão no braço. A minha mais velha fazia questão de me chamar a atenção com uma ferroada.

- Mãe, esta é a minha amiga Catarina. - espantoso, como as crianças fazem e perdem amigos. Há vinte minutos atrás nem se conheciam.

- Olá, Catarina. - respondi. Agora já sabia. Dali a pouco uma destas senhoras diria para ela não me incomodar com perguntas, mas meteria conversa comigo. E em vez de conversar com uma criança, das coisas que mais gosto de fazer, teria de aturar uma mulher com uma conversa igual a milhares de outras de sala de espera.

- Estás grávida? - perguntou a menina loira tratando-me por tu, como fazem todas as crianças desta idade.

- Estou.

- A Filipa diz que estar grávida é ter uma irmã na barriga.

- Desta vez é. A Filipa vai ter uma maninha.

- É um bebé?

- É... uma menina bebé.

- E vai sair da tua barriga?

- Vai, daqui a dois meses.

- Porquê?

- Porque só então é que está pronta.

- Ahhhnnnn... Como é que foi aí para dentro?

Já estava à espera. Só podia vir esta pergunta. Senti-me corar, não sei porquê. Quando olhei à volta vi toda a gente a olhar para mim. Tinha aparecido um daqueles silêncios terríveis, e todas aquelas mulheres ouviam a nossa conversa. Creio que um prazer sórdido aguçava-lhes a curiosidade de saber como descalçaria eu esta bota.

- Bem, foi uma sementinha que o pai da Filipa, pôs cá dentro e que cresceu aqui, no quentinho, até ser um bebé, como tu eras quando nasceste...", ensaiei à laia de resposta.

Fez-se um silêncio enquanto a menina dos cabelos loiros assimilava a minha mensagem. Com um ar de desprezo, virando-se para a minha Filipa, disse:

- A tua mãe está a mentir. Eu, lá na escola já estive a pôr sementinhas e só nasceram flores, não bebés.

Enquanto a minha filha ria e acreditava na opinião de uma recém-conhecida em detrimento da sua mãe, uma voz ouviu-se:

- Catarina, deixa a senhora em paz. Vai brincar com as revistas. Desculpe. - disse para mim, - Sabe como são as crianças. É a sua segunda?, ou tem mais?

Sem comentários: