No domínio da justiça, em Portugal, há muito que fazer de forma a melhorar a resposta do aparelho judiciário, seja na qualidade do conteúdo seja na redução do tempo de decisão dos conflitos.
É inconcebível que um cidadão que precise de recorrer aos Tribunais tenha que aguardar meia dúzia de anos até ter uma resposta definitiva sobre questões como arrendamento, defeitos de construção, ou então quanto a uma dívida que primeiro tem que ver reconhecida e depois executada, quantas vezes sem sucesso pois o devedor, "coitado", não tem quaisquer bens que possam pagar aquilo que deve.
Por outro lado, é igualmente inconcebível que as sociedade anónimas como os bancos, as seguradoras, as que concedem crédito, as empresas de telecomunicações, e outras usem o aparelho judiciário como o seu cobrador de dívidas, quantas vezes de montantes ridículos para aquelas sociedades e que nem justificam o esforço do processo.
É inconcebível que alguém que se sente injuriado por outrem espere um tratamento da máquina judicial criminal, do Ministério Público, semelhante àquela que tem uma vítima de roubo por esticão, por exemplo. Porém, a lei pouco diferencia a gravidade dos crimes em termos de procedimento criminal, e por causa de bagatelas jurídicas, a máquina está emperrada, sem tempo para dedicar ao que é complexo.
Serve este intróito para quê?
O programa de Governo do PS, para a área da Justiça, ocupa 7 páginas, da 137 à 143. Por entre vagas considerações há lá a frase "reavaliação do período de funcionamento dos tribunais".
Ontem, ao discutir o programa na AR, o Governo lança aquela que considerou ser a melhor, a mais eficaz, a mais adequada e urgente medida para começar a resolver os problemas da justiça: reduzir as férias judiciais de Verão.
Verão quão demagógica é a medida se conseguirem ler aquilo que tenho para escrever. Talvez seja longo, mas garanto que é relevante.
Actualmente há três períodos de férias judiciais: do dia 22 de Dezembro a 3 de Janeiro; de Domingo de Ramos à segunda-feira seguinte ao Domingo de Páscoa; de 16 de Julho a 14 de Setembro.
Tantas férias?, dirão os menos esclarecidos, a população em geral. Pois é. É por causa dessa reacção que o Governo se prepara para demagogicamente as reduzir.
Acontece que, por razões constitucionais, os Tribunais têm que estar abertos durante todo o ano. Então e as férias, dizem-me, servem para quê? Actualmente, servem para pôr a casa em ordem.
Durante o período de férias, apenas correm termos os processos legalmente julgados urgentes. Mas os outros não param, pura e simplesmente. Andam para se por em dia. Eu explico.
Num Tribunal trabalham funcionários e Magistrados (Juízes e Ministério Público). Os primeiros não têm as férias todas que acima enunciei. Têm apenas os legais 22 dias ou mais de férias, consoante a sua antiguidade. Que, obrigatoriamente, têm que gozar naqueles períodos, em clara violação do direito de gozar as férias quando o trabalhador entender melhor.
Assim, durante as férias judiciais, os funcionários que vêm trabalhar ficam a cumprir processos com despacho que ainda não foram cumpridos (sim, por excesso de serviço), e vêm arrumar as secções, escolhendo os processos que podem e devem ser mexidos e aqueles que podem e devem ir para o arquivo. Entre outras actividades como operações de arquivo de processos e objectos, incompatíveis com o atendimento público no Tribunal e o sistemático andamento de processos para dentro do gabinete do magistrado e deste para a secção.
Quanto aos Magistrados, são poucos os que gozam os dois meses de férias de Verão. Por exemplo. Há que assegurar o serviço de turno, pois durante as férias judiciais tem que haver um Juiz e um Procurador que assegurem o serviço urgente. Se em Lisboa, isso pode ocupar um ou dois dias... no Círculo de Beja, ocupará duas semanas (!). Duas semanas das férias em que o Juiz e o Procurador têm que assegurar o serviço em todas as comarcas do Círculo, o que obriga a deslocações diárias que podem ultrapassar os duzentos (!!) quilómetros.
Para além do serviço de turno, é durante as férias que os Juízes conseguem estar com calma no seu gabinete a proferir as decisões mais complicadas. Porquê? Porque durante o ano, diariamente, um juiz recebe entre trinta a cem processos que demandam a sua atenção para lhe apôr um despacho. E se nalguns um minuto é suficiente, noutros nem uma hora, ou um dia de trabalho chegam para decidir. Como tal, ficam de lado, à espera daquele dia em que não haverá processos para despachar (como nas férias) para receberem a merecida atenção.
Também sei de juízes que gozam as férias na íntegra, sem pensar num processo que seja durante aqueles dois meses. Normalmente, são os que trabalham doze a catorze horas por dia durante o resto do ano. São aqueles que não têm fins-de-semana, pois só ao sábado e ao domingo conseguem a tal calma para as decisões de fundo.
E, diga-se, um Juiz não pode ir de férias em Fevereiro, por exemplo, quando as tarifas das viagens são as mais apetecíveis e os destinos estão mais aprazíveis. Não pode conhecer Marrakech sem gente em barda, porque só lá pode ir durante a Páscoa, quando todos invadem aquelas paragens. Porque muito complicado será permitir que um Magistrado se ausente quando se espera que tudo funcione bem.
Já agora, os advogados também não querem que os Tribunais "andem" nesse período. E porquê? porque precisam de ter algum período do ano em que possam trabalhar sem que os prazos estejam a correr e a pressionar. E ainda ter tempo para ir de férias.
É por isso que eu acho que a medida anunciada é um disparate demagógico para iludir o cidadão comum e pouco esclarecido. Porque, se reduzirem para um mês o período de férias judiciais, vamos ter muitos problemas.
Não me parece que possam obrigar um Juiz a ir de férias em Agosto. E se ele quiser fazer férias repartidas, uma vez que só tem um mês para gozar? E quando terá férias o Juíz que estiver de turno?
A única hipótese será mesmo acabar com as férias judiciais. Todas. Como os hospitais que também não têm férias. E cada um marca as suas para quando quiser. O que será muito prático em cidades como Lisboa e Porto, onde há muitos Tribunais e Juízes, mas não em Estremoz, ou Sabugal, onde apenas um Juiz existe. E se se ausenta, outro terá que assegurar o seu trabalho urgente. O da comarca ao lado, ali a vinte, trinta, ou mais quilómetros, que tem os seus processos para despachar e julgamentos marcados, pois naquele dia, para si, não há férias.
E preparem-se para que, então, o Juiz e o Procurador trabalhe apenas das 09h00 às 17h00, almoçando durante uma hora. Sem trabalhar aos fins-de-semana, como qualquer outro trabalhador tem direito... Porque se é certo que com a magistratura se abraçam grandes responsabilidades, o certo é que um Magistrado, antes de tudo o mais, é uma pessoa... não um escravo da função que exerce.
Tenho a nítida sensação que a medida só tem uma finalidade. Atacar a Magistratura. Judicial e do Ministério Público. Porquê? Porque são incómodos...
Já agora, porque razão os senhores deputados, que não têm obrigação de exclusividade e enquanto estão na AR são simultaneamente advogados, engenheiros, sei lá, têm três meses de férias no Verão? Não é preciso legislar a toda a força nesse período?
Sem comentários:
Enviar um comentário