11.3.05

"Um Dia Acordei" (9)


FUGIDIA
Ela fugia.

Ela estava só.

Tantos anos de solidão. De companhias imperfeitas, dolorosas. De solidão.

Estava cansada. Cansada daquele dia. Ainda sentia a pele das faces presa por lágrimas secas. Sentia uma dor no peito, junto com aquele arfar que a afligia. Mas não parava.

Caminhava. Caminhava rápido pelas ruas cheias de gente. Gente que saía dos empregos, gente que recuperava os filhos que abandonara de madrugada, ramela no olho ensonado. Gente que a estorvava e ignorava. E arfava, que um maço de tabaco por dia deixa as suas marcas. Mesmo sem correr, ter atravessado toda a cidade a andar, rápido, a cansara. A vida cansa. A fuga cansava-a.

Fugia.

Hoje mais alguém ficara para trás. Chamara-o de amigo, primeiro. Ao fim de tantos anos acabou por chamá-lo de querido, de amante. No fim fora igual a todos os outros. E para além de perder um amante, sentia o vazio pelo amigo de outrora. Fora igual a todos os outros.

Todos menos um. Sim, um. Como ele fora diferente. Como eles foram diferentes. Como em breves momentos foram felizes. Momentos intensos, espaçados como as cidades que os retiam. Como fora cruel o fim.

O Fim.

Mas o fim foi selectivo. Escolheu-o a ele, deixou-a a ela. Deixou-a com um sentimento absurdo de responsabilidade, de castigo. De que o bom só acontece uma vez e se nos é retirado é porque dele não somos merecedores.

Tudo o que agora surja mais não será que um fraco sucedâneo. Não conseguirá nunca superar o modelo anterior, o modelo negado.

Nem mesmo sendo um amigo. Ele fora um amigo e um amante. Peça insubstituível, que não se conseguem transformar amigos em amantes nem amantes em amigos. Cada qual é o que deve ser. Nunca o que outro foi.

Sim, ele é insubstituível. Não quer isso dizer que o vazio que a apoquenta não possa ser preenchido.

Desde que não fuja.

Desde que rompa com o passado.

Como podemos romper com o passado se ele foi tudo o que sonhámos? Para quê o futuro incerto? Para quê o fugaz presente?

Ela vive no passado.

Eu, se calhar, também o faria.

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