3.3.05

"Um Dia Acordei" (5)


RAIOS

Pi... Pi... Pi... Pi... Pi... Pi... Pi... Pi... Pi... Pi... Pi... Pi...


Em fundo negro os riscos eléctricos, verdes, tomam uma forma bicuda, regular, quebrando a monotonia da linha horizontal. O constante apitar ajuda a perceber que o paciente ainda está vivo.


O diagnóstico é reservado. Cinquenta e seis anos em estado de coma há dois dias. O fole do ventilador, bfff... bfff... bfff... bfff..., também constante, agarra aquele homem à vida, insufla-lhe o ar, o oxigénio, alimentando-o do que nos é mais essencial.


O quarto, asséptico, é bem iluminado pelo sol que penetra por entre as cortinas. Sol de Inverno, que não chegaria para manter a temperatura que o ar condicionado assegura naquele espaço. Mas na cama, rodeado por aquelas máquinas do Inferno, ou dos Céus, ou do Purgatório, só está o paciente. Aquele homem de cinquenta e seis anos, em estado de coma.


Ele não ouve os piis..., nem os bffs..., ele não ouve. Não ouve os médicos, as enfermeiras que volta e meia por lá passam para se assegurarem de que os caríssimos aparelhos funcionam e que, em caso de urgência, fariam disparar o alarme na central.


Ele não ouve. Não transmite. Mas vive. Se a isso se chama vida. Se vida for um conjunto de acções musculares induzidas e reacções químicas celulares. Se vida forem aqueles pensamentos que tem mas ninguém conhece. Nem ele deles se recordará se um dia voltar ao mundo dos que sobrevivem sem máquinas. Ao nosso mundo.


Armando, sim, é esse o seu nome, pensa agora, ainda que vagarosamente, ainda que demore uma hora para realizar um silogismo que nos levaria um minuto. Armando pensa como tudo aconteceu. Toda a vida defendeu a tese de que ninguém estava no sítio certo com as pessoas certas. Se alguém encontrava o seu outro eu, o seu complemento, aquele alguém a quem chamamos de amor, estava a exercer uma profissão, um ofício, um emprego que não lhe agradava por inteiro, que não era o que realmente ambicionava. Se porventura assumia a actividade desejada, por certo tinha o homem ou a mulher errada a seu lado. Aquele outro que o completava teria ficado algures no passado, ou então inalcançável num futuro que não seria vivido.


Esta era a tese de Armando. Com ele foi assim. O mundo das finanças era o seu. Sempre adorara lá se movimentar. Sempre quisera tê-lo. E acabou por o conseguir. Nele fez fortuna. Nele se tornou invejavelmente capitalista bem sucedido.


Nunca teve a mulher certa. O seu casamento não teria sido menos emocionante se escolhesse um frigorífico para mulher e decidisse adoptar o seu único filho. A viuvez trouxe-lhe a calma e satisfação de outros tempos. Até que ela surgiu.


Vinda do outro lado do Atlântico, aquela mulher. Aquele amor. Aquele sentimento que havia desistido de procurar. Que determinantemente julgara fora do seu alcance.


E pôs tudo em causa. A sua teoria.


Ahhhh! Que raiva!


Deus existe. Armando, que nele nunca acreditara, reconhecia agora a Sua existência. Deus existe, pensava. É um bicho mau e sádico que se diverte com a nossa dor. Com o desfazer das nossas alegrias. E ri imenso quando sonhamos com a felicidade. Mas, pudera!, Deus está só. E como todas as pessoas sós, feitas à Sua imagem, tornou-se amargo. Uma eternidade a amargar.


Logo, omnipotente mas incapaz de criar um seu igual, Deus não é feliz. É amargo. E se um homem, criação Sua para se divertir, qual TV, aspira a ser feliz, ele trata de desfazer tudo e mostrar que um insignificante não pode ousar ter aquilo que lhe está vedado.


Só isto justifica aquilo que lhe aconteceu. Armando não tinha problemas. Vivia como queria porque já não era economicamente dependente de nada nem de ninguém. Tinha profissão, sem qualquer horário, uma actividade que lhe dava mesmo gozo em exercer. E acordava todas as manhãs ao lado da mulher que amava, que o amava.


Naquele dia as coisas não tinham corrido bem. Primeiro a avaria no carro. Depois a chuva, a intempérie. O taxista que recusou levá-lo à casa de campo porque era longe. O taxista que aceitou levá-lo mas cujo o hálito era alcoolicamente preocupante. O pequeno despiste que o assustou. Que o fez dizer: "...deixe estar. Mesmo com a chuva eu faço o resto a pé. São só dois quilómetros e faz-me bem andar". A caminhada. A chuva a aumentar. O vento que destruiu o guarda-chuva e o expôs aos elementos. A trovoada. O raio.


O raio que Te parta!


Deus, Demónio, Bicho Mau... Ser Intragável que, invejoso, mal motivado, usaste os poderes de Zeus e fulminaste Arnaldo com um raio.


Com um raio?!


E porquê? Porque quis ser feliz.


"Mas eu vou recuperar, estás a ouvir, oh filho da puta? Vou sair daqui e ser feliz..."


Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii...

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