NEVE
Sentia-me pessimamente!
Mais uma vez o destino passara-me a perna, fazendo ruir todos os meus planos, todas as expectantes antecipações que povoam o meu espírito. O desejo de te reencontrar, de voltar a tocar-te, via a sua satisfação adiada. Mais uma vez, um obstáculo impedia-me de estar contigo como previra. Mais uma vez a tua ausência prolongar-se-ia para meu desconsolo. Queria-te. Mais do que nunca.
Ainda faltava tanto para que ficássemos de novo juntos.
Entretanto, aqueles dois ali eram os únicos seres racionais que via. Estavam, no entanto, uns degraus abaixo na escala evolutiva em comparação com aquele gordo e ágil gato que repousava enroscado junto à lareira.
Maldito nevão!
Viera sem avisar.
"Possibilidade de queda de neve", disseram quando saí do hotel. Podiam ter dito que ia nevar desalmadamente, que Deus se fartara do algodão doce que fizera e o enviara todo para nós, cá em baixo.
Era tudo tão simples. Saía cedo, subia à Torre, recolhia daqueles irmãos as suas assinaturas que faltavam, descia, entregava tudo no notário, punha-me na estrada e chegava até ti num instante. Num instante. Era tudo tão simples.
Só que tudo se complicou.
Sim, acordei cedo. Sim, subi à Torre. Sim, os dois irmãos assinaram. Não, não desci logo.
O desgraçado do carro gripou com o frio. Nevava desde as dez da manhã, e foi debaixo de neve que abri o capot do carro. Com o meu olhar "especializado" inspeccionei o desolador conjunto de fios e tubagens, de peças metálicas que se expunham aos flocos cada vez mais constantes. O vento já assobiava.
O líquido refrigerante ainda refrigerava.
O depósito tinha gasolina.
O óleo estava na quantidade certa.
Os fusíveis estavam intactos.
Não via nada obviamente fora do lugar.
Chamei os irmãos.
Pareciam dois garrafões com pernas. Apesar do matinal da hora, o cheiro a álcool era o bastante para desinfectar uma enfermaria. O bafo rebentaria qualquer balão da GNR.
Mas o certo é que percebiam de motores.
Bastou meia-hora para descobrir a porcaria que entrara na tubagem bloqueando a bomba de gasolina, e limpá-la do sistema.
Ainda o ponteiro pequeno não começara a sua viagem descendente e já o motor trabalhava.
E já a neve bloqueara a merda da estrada. E continuava a cair. A cair. Nada levemente. Olhei para o carro uma hora mais tarde e já não o vi. Foi desesperante.
Fiquei com os dois irmãos. Depressa perceberam que não tinha a mesma disposição deles, que não encarava a vida da mesma maneira. Abandonaram-me junto a uma televisão que apenas captava a RTP 1, e foram testar os seus fígados em contínuos bagaços durante discutidos jogos de dominó.
O gato... já sabes como me dou com gatos, arranhou-me as costas da mão quando insisti em fazer-lhe uma festa. De vez em quando, desconfiado, abria um olho e mirava-me lá do fundo, daquela almofada castanha junto à lareira alta.
O resto já sabes... foram dois dias até poder estar aqui contigo. Até poder acariciar a tua cara, a tua pele, a tua carne. Até poder beijar-te. A face. Os olhos. A boca. Toda, por todo o lado.
Até te tomar nos braços e esquecer o tempo.
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