2.3.05

"Um Dia Acordei" (4)


SAL


A mesa quadrada é igual às de tantas tabernas por esse Portugal fora. Os dois que lá bebem também passariam despercebidos em qualquer um desses templos do homem lusitano do princípio do século vinte.


Em cima, um jarro de barro que já foi cheio três vezes por aquele barrigudo com pêlos a sair das orelhas e das narinas, e que limpa a bancada de mármore com um pano, outrora branco, encharcado do vinho que vai sendo derramado por homens de rude instrução.


Dois copos completam o conteúdo da mesa escura, suja. Frente a frente, dois indivíduos vão consumindo o carrascão tinto que sai daquele barril com trinta anos. O barril, que o vinho nem doze meses tem. Aqui é assim, não se deixa envelhecer. Desde que venha da uva, seja tinto e tenha álcool os fregueses mais não exigem.


Dizia eu que eram dois homens. Apesar de sentados, percebe-se que são baixos. Molde antigo aquele que fazia os homens com metro e meio. Não é como hoje, que qualquer puto passa do metro e oitenta e facilmente se confunde com um jogador de basquetebol.


O mais gordinho é deveras curioso. O cabelo já é escasso, rara anedota do outrora, mas, ainda assim, comprido e zelosamente penteado pela manhã com um pente molhado que cola as finas repas à cabeça pequena. O problema é que, com o correr do dia e do vinho, vai ficando solto e despenteado, tornando-se exemplo acabado de como um quase careca pode ter de sacudir o cabelo dos olhos.


O nariz é vermelho, mas nada abatatado. A sua leveza de linhas deixa-nos na dúvida se tem alguma nobreza ou se descende de Pinóquio. As faces igualmente rosadas não escondem a pele branca do sujeito. Muito branca, quase como a folha em que escrevo.


Não tem pescoço. De gravata deveria parecer um saco do lixo mal amarrado. Mas gravata é vestuário que já não se lembra de usar... desde que lhe morreu a mãe, há tantos anos.


Ventura é o nome por que é conhecido. Para mim, se lhe tirassem o copo, via a figura de um heroinómano dos anos cinquenta... Mas não. É verdade que se injecta, mas é na barriga, com insulina... Também é verdade que o faz com aquelas seringas antigas, de vidro, que todos os dias ferve ao mesmo tempo que aquece a sopa que lhe conforta o estômago antes de se deitar. Sim, que apesar de beber muito todos os dias na taberna do Jaime, chega sempre à casa fria em condições de aquecer o caldo que a mulher-a-dias, vizinha de baixo, lá deixa.


Curiosa relação, a deles...


Ventura nunca casou. Conheceu mulheres, mas pouco. Nunca foi um amante, muito menos um marido. A vizinha é viúva. Aceitou o emprego porque a pensão é míngua e o Ventura tem uma boa reforma lá da empresa. E depois, porque lhe custa ver aquele farrapo sem ninguém que por ele olhe.


Então, todos os dias lhe deixa um tacho com a mesma sopa que para si preparou, e arruma, muito superficialmente, a casa. Uma vez por semana finge que limpa o pó e lava-lhe a roupa. Até mesmo a da cama, que ela própria muda. Custa pouco. Mantem-a ocupada, e rende-lhe vinte contitos por mês que sempre vão chegando para a conta da farmácia.


Pois o Ventura está sentado na mesa quadrada, frente àquele outro homem, fitando-o no olho.
Sim, no olho.


"Meia-Vista", como o conhecem lá pelo Jaime, só tem o olho esquerdo. O outro, a julgar pela cicatriz que cruza a órbita, nascendo na fronte e terminando no maxilar inferior, ficou-se algures na ponta de uma navalha manejada por um rápido canhoto.


"Meia-Vista", parece um marinheiro. De azul vestido, tem na cabeça um boné que nunca navegou mas se confunde com aqueles das imagens de marinheiros passados. É a grande dor da sua vida, nunca ter embarcado. Mas primeiro foi a mãe. Depois a mulher. Depois a filha. Nunca quis deixar nenhuma delas e todas o deixaram. Desculpa só tem a primeira, que foi chamada à Eternidade cumprida que estava a sua missão na terra. A outra trocou-o por um caixeiro-viajante. E a filha, por si criada com sacrifício desde os cinco anos de idade, esqueceu-se dele quando emigrou para a Suíça com um recém-conhecido.


Só, naquela casa minúscula, não tem a sorte de Ventura. Ele mesmo cuida de si. E o resultado está à vista, que as duas divisões já são pasto para pequenos roedores e alguns insectos rastejantes. Porém, isso não lhe interessa, que o vinho de má qualidade que o Jaime lhe vende tudo apaga.


O cabelo é totalmente branco, talvez um pouco amarelado por força da higiene que é parca, e ainda farto para quem já aparenta uns setenta anos. A sua pele é vermelha, forte, como se andasse pelo mar como o marinheiro que sonhara ser. Enquanto mira o Ventura, que ao contrário dele fuma (e sem filtro, ainda por cima) palita os dentes com as unhas. Não é bonito de se ver, mas hábitos assim nascem com os pais e jamais se perdem.


"Meia-Vista", fala pouco. Ouve mais. Muito atentamente ouve pela milionésima vez as histórias do Ventura. Todos os dias as ouve. Por entre jarros de vinho que com orgulho faz questão de pagar a meias, o velho de um olho só mantém o seu sonho. Não há ratos nem baratas, nem caspa ou seborreia, piolhos, pulgas ou qualquer outra merda que lho roube.


"Meia-Vista" sonha ser marinheiro.


Algures naquela alma está o mar e um barco.


Quando morrer não vai para o Céu, não. Vai vogar por cima das águas num daqueles veleiros de outrora, correr mares, ilhas, sol e vento, e sentir nos lábios o sabor do sal.

Sem comentários: