17.3.05

Tiros


Há algum tempo uma senhora faleceu quando estava entregue nos braços da medicina. O marido julgou o médico encarregue de a tratar responsável pelo óbito. E por isso nasceu um processo judicial de apuramento da eventual responsabilidade criminal do médico, o qual ainda corre termos.
Porém, o desgostoso viúvo não se contentou com a marcha da justiça e, há coisa de dois dias, em pleno Tribunal de Portimão, disparou sobre o médico quando este aguardava uma diligência no dito processo. Agentes da GNR presentes para outra diligência intervieram, e dentro do Tribunal ocorreu um tiroteio (!!) no qual foram disparados mais de uma vintena (!!!) de tiros. O atirador foi finalmente detido. O médico hospitalizado estando em recuperação.

É preocupante aquilo que o episódio revela.
Em primeiro lugar, e fruto de uma campanha de descredibilização que questiona as decisões judiciais sem qualquer rigor ou critério, permite-se duvidar da eficácia do aparelho judicial. Em notícias e comentários superficiais, violando regras essenciais como o contraditório ou o direito de defesa, e sem conhecimento das regras e procedimentos legalmente exigidos, contradiz-se aquilo que um Tribunal decidiu, com a segurança de um arauto da Verdade.
Assim, já há quem prefira fazer justiça pelas próprias mãos. A "sua" justiça, aquela que é parcial, e à qual falta esclarecimento ou segurança. A justiça ilegal e perigosa.
Situações como esta têm que ser severamente cerceadas, sob pena de regressarmos à anarquia, de vivermos num faroeste onde prevalece a lei do mais forte.

Mas mais se revela. Para quem corre no meio, percebe o desespero, a impotência que existe em casos de "negligência médica". Se, por um lado, hoje em dia há quem pressuponha a medicina como infalível e não aceite a incapacidade desta para sanar certos males, a verdade é que, nos casos menos evidentes, e que chegam às mãos do Juiz, este não pode decidir sózinho a questão. A matéria exige conhecimentos técnicos dos quais não dispõe, pelo que o Juiz tem que recorrer ao perito médico, ficando "preso" ao juízo deste. E, ensina-nos a experiência, que tais juízos periciais são muitas vezes inconclusivos, difusos, incertos.
A única forma de convencer os que se julgam vitimados é demonstrando a seriedade do processo, as exigências do mesmo e assegurando-lhes a dedicação dos meios disponíveis e imparcialidade do decisor. Para isso, é necessário respeito pelo sistema judicial, e não permitir que o minem com técnicas terroristas.
Um acto médico mal executado não tem necessariamente que ser crime. Um crime é algo de extraordinário. Algo como dar um tiro noutrem. Aí sim, dificilmente estamos perante outra coisa que não um crime.

Finalmente, o episódio revela a insegurança nos Tribunais portugueses. Salvo raras excepções, não há qualquer controlo de entradas e de segurança. Se alguém descontente com a condenação ou absolvição proferida, quiser tirar desforço ao decisor, poderá entrar Tribunal adentro, e chegar ao seu gabinete tendo por obstáculo apenas uns avisos escritos de "passagem proibida" ou "acesso reservado".
Felizmente ainda vivemos tempos de brandos costumes. Mas quando a polícia é emboscada, como ocorreu há alguns dias na Cova da Moura, parece-me existirem razões para começar a pensar em pôr termo ao laxismo em que se vive. E, sem excessos securitários, passar a olhar de outra forma para esta questão.
Senão, como em tantas outras situações, só depois de casa roubada se põem trancas na porta. E passamos a remendar o fundo ao barco quando já entrou tanta água que o mesmo ameaça ir ao fundo.

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