8.3.05

"Um Dia Acordei" (8)


VELHA

Era uma velha com ar de quem pode contar muitas histórias.

Sim, era uma velha.

"Velhos são os trapos", dizem. As pessoas são idosas. Essa será uma idosa com ar de quem pode contar muitas histórias.

Estou em completo desacordo. Era uma velha.

"Idosa" é um termo terrível. "Idosa" soa a fardo, a antecâmara da morte, a lares e a maus tratos, a decrepitude e visitas constantes ao médico. "Idosa" é uma qualificação social, um pretenso escudo para as agruras da sociedade, uma desculpa patética da sociedade com a consciência pesada.

"Velha" não. Velhas são as árvores que aguentam as intempéries e estendem os seus ramos, as suas raízes, a sua sombra. Velhas são as casas que, mesmo em ruínas, mantêm as suas fundações firmes, sólidas. Velhas são as pedras que cá estavam antes de nós e depois de nós cá estarão. Velhas são as ondas do mar que sempre embalaram a vida.

Qual é a vergonha em ser velha? Aquela mulher era velha. Só de para ela olhar sentia a vida, uma vida extensa, antiga, cheia de experiências, de sol, de vento e chuva, cheia de vontade para ter resistido até agora. Agora que é velha.

Cada uma das suas rugas poderia ser a história de um dos seus filhos, ou dos filhos deles, ou mesmo daqueles que seus bisnetos são... já lhes perdeu a conta. São tantos. Estão por todo o mundo. Quantos deles já não chegarão a velhos? Quantos são já idosos?

Lembra-se da morte do Rei. Era pequena, mas não esquecerá o rebuliço, as almas perdidas nas ruas da cidade a temer pelo futuro, e o riso satisfeito do seu pai que nem sabia ler mas defendia fervorosamente a República.

República que viu nascer. E o Estado Novo. E o Estado Novíssimo. A primeira e a segunda guerra. A guerra colonial. Tudo viu. Em tudo isto estava o seu sangue. A sua família. E tudo acompanhou atentamente com a vivacidade que sempre lhe foi reconhecida.

Aquele brilho nos olhos pode ser o reviver de uma história em que poucos acreditarão. Ou se lembrarão de um dia ter existido.

Não a tratem, pois, por idosa.

Aquela mulher é velha.

Velha!

E ainda bem.

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