ESTUQUE
Sentiu um tremor no íntimo das suas entranhas, um sinal que percorreu todo o corpo, ascendeu ao cérebro e fez vibrar os olhos. Estes humedeceram-se, ganharam brilho. Contraiu os seus cantos, onde rugas nasceram e se aprofundaram.
O tremor repetiu-se, mais intenso, forçando o eco na caixa torácica. Conhecia bem demais os sinais. Contraiu-se. A língua contra o palato.
A visão fugiu-lhe, a sala desfocou-se, o mundo ficou turvo, enquanto os músculos abdominais tinham um espasmo. O diafragma oscilou e empurrou o ar para o esófago. A massa aeriforme subiu. Fez vibrar as cordas vocais e toda a garganta, toda a boca entretanto escancarada, todo o corpo, participaram na produção, realização e apresentação de um monumental arroto. O som, prolongado, ressoou na sala vazia, ampliado.
Grotesco!
As finas paredes internas do imóvel estremeceram e transmitiram à estrutura do prédio o som da agressão social.
No andar de cima, Felisberto, calmo funcionário público das Finanças, caçador aos fins-de-semana, pegou na caçadeira, carregou-a e bateu à porta do vizinho.
Quando este, a arrotar, a abriu, disparou sem hesitar, desfazendo o peito da besta.
*
Em Tribunal foi absolvido.
Ninguém recorreu.
Dias depois, o presidente do Colectivo de Juizes, que morava do outro lado da rua, assobiava enquanto tapava de vez, finalmente!, as rachas no estuque.
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