SEM IRS
A rotina de mais um dia a pesquisar no lixo iniciou-se com a calma religiosidade de um rito. Abriu o pequeno portão de ferro carcomido pelo tempo e transpôs em três passos bem medidos o pátio ao sol exposto. Junto à porta introduziu nesta a chave que rodou três vezes.
CLACK! CLACK! Click! Penetrou na penumbra que iluminou rapidamente, e trepou o lanço de escadas que o separava do primeiro andar. Uma vez no gabinete, sentou-se à secretária contemplando as pessoas que na rua formigavam.
Tanta gente normal, com empregos normais, com vidas normais e ele ali, pronto para mais um dia de "trabalho" se assim o entendesse o patrão. Havia já cinco dias que não era chamado. Cinco dias a ler jornais, ouvir música e sim, admitia, a jogar cartas no computador, que longe vai o tempo de baralhar os rectângulos plastificados para a seguir os estender sobre a mesa.
Porém, hoje não lhe apetecia fazer nada disso. Quase como punição, não comprara os quilos de linhas recém-impressas que diariamente lia ao arrepio e depois lançava no lixo. A pantalha virtual mantinha-se sem energia, os jogos perdidos numa memória inoperante. O silêncio do gabinete permitia ouvir a gente normal que lá fora vivia.
Olhou a secretária. Desejou que nela estivesse um documento, um processo, um desenho, uma factura... Naquele escritório o papel não era trabalho. Aliás, naquele escritório não se trabalhava. Esperava-se.
Concentrou-se nas sombras que se deslocavam, lentamente, ao ritmo da rotação terrestre, pelas paredes amareladas. Muito tempo depois levantou-se e pontapeou o caixote do lixo.
Depois, nele pegou indo colocá-lo, na extremidade da sala, em cima do armário onde pessoas viam livros mas que mais não era que um bar camuflado. Despiu o casaco, desapertou o colarinho, afrouxou a gravata sóbria e tirou um bloco de papel de uma das inúmeras gavetas fechadas. Da outra ponta da sala foi fazendo bolas de papel que lançou para o cesto. Imitou Magic, Kareem, Jordan, Shaquille...
Foi então que o telefone vibrou. Cortou-lhe o lançamento, "que belo contra ao gancho de Larry Bird". Atendeu.
- Sim?
- Vem. Há cá dois.
- O. K.
Apertou o colarinho. Ajustou a gravata. Vestiu o casaco. Saiu até ao armazém onde mais lixo lhe viria parar às mãos. Mais dois imbecis que deviam ser devidamente apertados até cantarem o que quer que fosse preciso.
Por saber esperar, por saber torturar, por saber estar calado e por não ter consciência, ganhava mil contos certos todos os meses. Sem IRS.
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