(nota prévia: depois do "Um Imenso Caldeirão", a produção de contos continuou. Os que se seguiram foram reunidos em "Um Dia Acordei". Nos próximos dias, contem com a sua revelação, aos poucos, para ler devagar. Começa assim...)
"UM DIA ACORDEI"
Um dia acordei.
E a vida tinha sido apenas um sonho.
CORRENTE
A praia é pequena. Uma estreita faixa de areia no fundo de uma falésia. O mar, revolto, espuma junto às frequentes rochas, branco, verde, azul, entrecortado por manchas de luz de alguns raios que conseguem furar o céu cinzento.
Está sozinho, aquele rapaz. Nesta altura do ano ninguém para ali vai. Mas ele está lá, à beira de completar a segunda década da sua vida. Está sentado na areia, joelhos junto ao peito, abraçado às pernas. Contempla o mar, não!..., contempla um ponto no mar, onde a viu pela última vez.
É um rapaz normal, mediano, que passaria despercebido em qualquer lugar. Em criança fora gordo. Gozaram com o seu peso, as suas formas arredondadas, o seu jeito sensível e mimado. Mas depois cresceu, emagreceu e, se nunca criou músculos por aí além, o certo é que ficou com uma aparência agradavelmente normal, comum.
Há mais de duas horas que olha para ali... o mar é traiçoeiro. A maré vazante puxa tudo para o largo numa corrente forte e gelada. Olha o vazio, o vazio da sua alma que chora a perda há tanto anunciada. Quantas vezes sonhara com aquele desfecho? Quantas vezes acordou com o nome dela na boca e a sensação de que nada o poderia evitar? Cinco? Dez? Qualquer coisa do género.
Hoje, finalmente, os seus sonhos, pesadelos, tornaram-se realidade e ele é o portador de uma verdade que ninguém virá a conhecer. O seu último segredo está guardado.
O rapaz que olha aquele ponto fixo no mar, que olha o vazio da sua alma, não sabe quando sairá dali. O que testemunhou feriu-lhe o coração, abateu-lhe a vontade, destruiu qualquer objectivo... Só quando anoitecer, talvez, estará em condições de se erguer e, suave e absortamente, caminhar até casa.
Estava sozinho. Os pais foram uns dias para Espanha. Por isso, quando acordou ao som da campainha, esta soou fúnebre. Adivinhou que seria ela. Levantou-se, abriu-lhe a porta, e levou-a para o quarto. Estava a chorar e pediu-lhe que a abraçasse com força. Estava fria. Foi debaixo dos cobertores que a manteve junto a si. Sentia as lágrimas quentes a correrem e molharem-lhe o pijama. Nada disse. Agarrou-a. Só. Num grande amplexo.
Já era meio-dia quando ela o olhou nos olhos e disse:
"Vou fazê-lo. Hoje."
O nó na garganta do rapaz que olha o mar aumentou. Só podia ser isso.
"Juraste que me ajudarias."
"Mas... eu não quero, eu ..."
"Por favor..., eu ajudar-te-ia..."
Após um silêncio ele acedeu.
"Como?"
"Com poesia. Com força. Vou deixar que o mar nos leve."
"E eu?"
"Fica na praia. Assegura-te de que parti. Que nós partimos."
Já tinham falado daquilo. Por isso em silêncio desceram as escadas da falésia, abandonadas pelo Inverno. Em silêncio se sentaram na areia.
"Não queres repensar?..."
"Por favor..., não... não..."
"Desculpa."
Passados minutos, em que só as ondas a rugir fustigavam o silêncio dos dois, ela ajoelhou-se a seu lado, tomou-lhe a cabeça nas mãos e olhou-o.
"Amo-te. É pena que o homem mais perfeito que conheço seja o meu irmão." Beijou-o ao de leve nos lábios e partiu. Mar adentro.
O rapaz viu. Viu-a avançar. Passar a barreira de rochas, ser apanhada pela corrente e desaparecer. Desapareceu.
Os pais nunca saberiam. Nunca saberiam que a filha estava grávida. Que era seropositiva. Que o bebé sofreria da doença. Que o pai do bebé já morrera com uma overdose. Que o irmão era a única pessoa a saber da história. E a admirar a irmã que também amava.
Sentia nos lábios o aflorar de um sentimento impossível. Sentia que se não fosse a malfadada genealogia eles poderiam ter sido amantes. Mas que foram apenas os melhores amigos do mundo.
O rapaz olha para o mar, para o ponto do mar em que a sua irmã desapareceu. Não consegue chorar.
Ergue-se, avança para as ondas, caminha. Passa a barreira de rochas. Sente a corrente. Deixa-se levar.
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