PARTE
Olhos tristes.
Como os teus olhos estão tristes.
Como doeu, ver-te depois de tantos anos, triste.
Estavas com o capacete posto, e nem o tiraste. Ias pegar na mota e trabalhar. Uma "cinquenta" para entregar correio expresso. E pela viseira esses olhos tristes, vencidos, completamente derrotados. Apesar de iguais a doze anos atrás, o brilho fugira. O sonho fugira. E aquilo que para ti sonhei não existe. Não o tens. O meu sonho também se desmoronou. Porque és um vencido e sempre te vira como vencedor.
Era pequeno quando brincava contigo. Já andavas de mota, ainda eu pedalava mal. Foste tu quem me ensinou a andar de bicicleta, lembras-te? Já tinhas namorada ainda eu detestava as raparigas e as suas bonecas. Enquanto montava legos tu desmontavas motores. E sonhavas.
Sonhavas em sair de casa, deixar o padrasto execrável, e ser independente. E eu acreditava. Via-te como um ídolo, um exemplo. Fazias tudo o que querias e perdias tempo a brincar comigo, seis anos mais novo. Fazias tudo o que querias e enfrentavas a porrada que te davam.
E acabaste por partir. Um dia, sem dizer nada. Sem nada se saber. Pura e simplesmente já lá não estavas. Já não te via à janela do quarto. Já não ouvia a música que punhas alto e eu não percebia. Já não estavam ali a tua mota, nem aquelas miúdas giras com quem andavas.
Então comecei a sonhar. Sonhei que tinhas conseguido. Que venceras. Que eras autónomo. Tantos anos depois só podias ser mecânico de qualquer campeão de motociclismo. Ou de automobilsmo. Na pior das hipóteses eras encarregado de alguma oficina onde só pelos sons percebias os defeitos dos carros, as falhas nos motores.
Sonhei-te vencedor. Nunca casado, não! Qual seria a mulher que te prenderia? Tu, que com o teu jeito tímido e resposta sempre pronta arranjavas as mulheres mais giras. Tu, que na traseira da tua mota levavas loiras com os cabelos a sair do capacete e que te agarravam com medo de cair nas curvas que negociavas a alta velocidade.
Como doeu ver os teus olhos vencidos. Ver-te de volta à casa de onde fugiste e para onde regressaste sem qualquer ponta de orgulho. Para ficar pior que há doze anos atrás. Para conduzir uma "cinquenta", tu, que devias andar numa moto de alta cilindrada.
Como me falaste quando estupidamente perguntei "Então, como vai isso?" "Não muito bem..." deixaste no ar. Não muito bem... Vai péssimo. Perdeste os teus sonhos. Desfizeste os meus. Caíste. Dói-me ver-te assim. Não podes ser assim. Vou tentar esquecer esses olhos magoados e imaginar-te há doze anos atrás. Vencedor. Meu ídolo. E sonhar que venceste. Que quem regressou foi a imagem sonhada por todos os que maldisseram a tua partida.
Por favor, ... parte outra vez.
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